As desigualdades resultantes da estruturação do sistema educativo remontam a tempos muito anteriores a março de 2020. Os efeitos que destas surgem estendem-se à escala global, não excluindo Portugal desta realidade.
O sociólogo Anthony Giddens refere que as instituições educativas promovem uma “reprodução cultural”, já que, “conjuntamente com outras instituições sociais, contribuem para perpetuar as desigualdades económicas e sociais ao longo das gerações”.
O ambiente familiar em que a criança se insere e com o qual convive numa base diária sedimenta determinadas formas de refletir e padrões de pensamento, muitas vezes refletores da realidade socioeconómica e cultural em que o agregado familiar vive. Os valores que abrangem e delineiam esta realidade ser-lhe-ão incutidos, por vezes de forma não premeditada, uma vez que se encontram intrinsecamente ligados à mesma.
Assim sendo, constata-se que os conhecimentos ensinados na escola, de cariz mais teórico, acabam por ir de encontro às estruturas e ideias tradicionalmente propugnadas pelo que são as famílias com melhores condições financeiras, muito vincadas naqueles que seriam os ramos no mercado de trabalho tomados como mais prestigiados, médico e advogado como clássicos exemplos. Tal acaba por descurar o conhecimento prático, sendo este subvalorizado e associado a profissões rotuladas como menos apetecíveis e afetas às camadas mais pobres.
Esta distinção entre o que é ou não valorizado, o que é ou não útil e o que é ou não digno, por exemplo, acabam, muitas vezes, por acentuar as desigualdades no acesso ao ensino e no percurso após entrada.
Estas desigualdades são claras desde muito cedo, começando pela possibilidade ou não de a criança frequentar a creche e o ensino pré-escolar. Constata-se que estes têm um importante papel no desenvolvimento da criança nos seus primeiros anos de vida, não só permitindo o desenvolvimento das capacidades e relações sociais, como também sendo estimuladas a linguagem e oralidade, bases para uma futura boa aprendizagem.
Numa perspetiva mais alargada e tendo por base o relatório “Portugal, Balanço Social” de 2020 e 2021, elaborados pela NOVA School of Business and Economics em colaboração com o BPI e a Fundação “La Caixa”, é de conhecimento que estas disparidades se sentem ao ponto de se refletirem nos níveis de insucesso escolar, nos números de acesso ao ensino superior, e ainda no que concerne as taxas de abandono escolar.
Não obstante, não se poderá descurar os impactos resultantes de múltiplos confinamentos, incerteza e medo marcantes da pandemia. Este agravamento estende-se, de facto a uma escala europeia e mesmo global, segundo o estudo realizado pela Human Rights Watch (HRW), organização não-governamental que defende e realiza pesquisas sobre os direitos humanos. As estimativas apontam que 90% das crianças e jovens em idade escolar no mundo tiveram a sua educação prejudicada pela pandemia.
A transição integral para um ensino em regime online foi algo para o qual o país não estava preparado e muito menos as crianças e as famílias. Rui Gomes, doutorado em Ciências da Educação e professor catedrático da Universidade de Coimbra, constata que “A desigualdade de acesso à sociedade digital tornou-se notória com o recuo dos alunos para o espaço doméstico (…)”.
O acesso ao computador e à internet tornaram-se essenciais para o ensino à distância. Ainda que, ao longo dos últimos anos, e segundo os dados disponibilizados pelo Sistema de Informação do Ministério da Educação (MISI), se tenha registado um aumento da percentagem de alunos que têm estes meios disponíveis para uso, este acesso continua a ser muito desigual. Os beneficiários dos Serviços de Ação Social Escolar são os mais limitados ao usufruto de computadores e internet.
Numa perspetiva multidimensional, a necessidade de refeições servidas pelas escolas, por impossibilidade das famílias de as poder providenciar, bem como o acolhimento de alunos em situação de risco, nomeadamente vítimas de agressões e violência dos mais diversos tipos no contexto doméstico, concretizam igualmente implicações não só ao nível da saúde e bem-estar básicos como num plano secundário no aproveitamento da criança.
Desigualdades no Ensino Universitário
Ao nível do ensino universitário, ainda que mais seletivo, por razões exatamente motivadas pela desigualdade de classes, também se verificaram complicações. A limitação ou mesmo impossibilidade de acesso aos recursos outrora disponíveis aos estudantes, como bibliotecas e espaços de estudo até aos problemas referentes ao acesso a computadores e internet, transversais a todos os graus de ensino, são alguns exemplos de desigualdades que afetam os estudantes neste nível de ensino.
Os estudantes internacionais, que se encontram noutro país a frequentar o programa Erasmus, também são dos mais afetados por esta ameaça à saúde pública. Muitos estudantes não têm qualquer sistema de apoio no país em que estudam e encontram-se sem possibilidade de regressar ao seu país natal, estando assim sozinhos e sem qualquer tipo de suporte.
Confrontados com estas realidades, o estado e, no caso universitário, as próprias universidades, não se acanharam com implementação de medidas para nivelação dos seus estudantes e a tentativa de esbater estas desigualdades. Segundo o relatório já mencionado “Portugal, Balanço Social” de 2020 e 2021, constata-se que ainda assim estas ficaram muito aquém das necessidades.
Olhando de perto para o exemplo da telescola, o programa “Estudo em Casa” foi posto no ar no canal RTP Memória e surgiu como forma de colmatar estas dificuldades de acesso ao mundo digital. Nem esta terá chegado a todos os estudantes da mesma forma. “O aumento [de 60%] de espetadores não é homogéneo entre classes sociais, sendo mais expressivo entre os mais ricos (classes A e B)”, lê-se no documento.
Afirma Elin Martinez, investigadora sénior da HRW para a área da educação declara que “A educação das crianças foi confiscada num esforço para proteger a vida de todos do (novo) coronavírus. Para compensar o sacrifício das crianças, os governos devem finalmente estar à altura do desafio e tornar urgentemente a educação gratuita e disponível para todas as crianças em todo o mundo”.
Perante o estado da arte e com gradual abrandamento das regras, é prioritária e fulcral o investimento no ensino e na educação. Nas palavras de Josep Borrell “A UE reafirma a importância primordial de uma educação de qualidade para o desenvolvimento pessoal, social e profissional das crianças e jovens, dentro e fora da UE, para construir um futuro melhor e mais equitativo, reduzir as desigualdades socioeconómicas e de género e promover a paz e democracia”.
Beatriz Areal dos Santos
Fonte: JUP online por indicação de Livresco
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