Desde 12 de março que não tem um dia de folga. Mas é assim porque aceitou ser ministro da Educação por um “sentido de missão”. Todos os dias tem saudades da sua “bata” de cientista, mas não exclui um terceiro mandato. A “Notícias Magazine” entrevistou Tiago Brandão Rodrigues na Escola Básica de Gueifães, na Maia. Após uma visita ao estabelecimento liderada pelo presidente da República. Visivelmente cansado, só retirou a máscara para falar ao final do dia para as câmaras e microfones. As escolas estão preparadas para o ano letivo, garante. E a Educação não só conseguiu superar o ensino à distância imposto pela pandemia como irá beneficiar da “bazuca” que o país irá receber por causa do impacto do surto epidemiológico. Aos 43 anos, falou de si, dos seus e de mudanças que deseja cumprir. Numa sala de aula afastámos as mesas para conversarmos com distanciamento. No final, já noite, despediu-se das duas assistentes operacionais que aguardaram pacientemente pelo fim da entrevista para fechar a escola, tratando-as pelo nome – D. Fátima e D. Alzira sorriram-lhe e também lhe garantiram: “Vai correr tudo bem”.
Alunos de uma turma que forem para casa em isolamento profilático vão ter aulas à distância?
Quem determina o isolamento profilático são as autoridades de saúde. Na possibilidade de um aluno, dois ou uma turma terem de passar algum período em casa, os 14 dias do isolamento profilático, ou mais algum tempo, obviamente que teremos todos os mecanismos para que esse ensino à distância se possa fazer.
São os professores da turma que vão dar esse apoio à distância?
À partida serão os mesmos professores, como no passado, mas quem tem autonomia para tomar esse tipo de decisões é a escola. Imaginemos que uma turma vai para casa três ou quatro dias, como já aconteceu nalgumas escolas, por o delegado de saúde entender que não há necessidade de isolamento profilático, provavelmente nesses dias pode haver trabalho autónomo por parte dos alunos ou também sessões síncronas. Importante é que possa haver um seguimento e que o retorno à escola possa ser o mais rápido possível.
Está previsto professores e alunos fazerem testes antes desse retorno?
A abordagem de testagem é definida pelas autoridades de saúde. Em maio e junho, houve casos positivos, mas a grande maioria, se não a totalidade, foram fora do ambiente escolar. O que queremos é que todas as estratégias e medidas médicas sejam feitas o mais rapidamente possível para que efetivamente quem teste negativo depois de um período ou não de isolamento profilático possa voltar rapidamente à escola – esse é o grande objetivo.
O kit de máscaras será renovado no 2.º período?
Claro. Em maio e junho distribuímos com a ajuda das Forças Armadas máscaras cirúrgicas porque na altura não existiam máscaras comunitárias no mercado. Agora, as escolas compraram localmente com determinadas regras de certificação: são três máscaras comunitárias com 25 lavagens pelo menos. Depois será distribuído orçamento pelas escolas para comprarem para o 2.º e para o 3.º período. Foram gastos sete milhões para o 1.º período. Além de máscaras foram adquiridas viseiras, máscaras transparentes, batas plásticas reutilizáveis, luvas e o álcool-gel que já faz parte da vida de todos nós e que vemos nas escolas praticamente em todas as esquinas.
Os clubes de artes, desportivos ou de ciências, uma vez que juntam alunos de diversas turmas, vão funcionar este ano?
As escolas têm livre arbítrio de construir o seu projeto pedagógico. Mas vejamos o que vai acontecer na Educação Física, estive em duas escolas onde foi explicado que vai haver o distanciamento normal, simulação de treino e treino condicionado. Obviamente que não podemos pensar na atividade física tal como ela acontecia até agora, mas o mais importante é que ela aconteça. As escolas têm nos seus planos de contingência formas de manter as bolhas para que possam existir as disciplinas que não têm tantos alunos.
E o Desporto Escolar?
Estão em preparação um conjunto de regras para que possa acontecer. Nunca poderemos em contexto escolar exceder o que acontece na sociedade, mas seria estranho e ninguém entenderia se aquilo que acontece na sociedade não fosse acompanhado pelas nossas escolas.
Os clubes de formação estão asfixiados financeiramente. Está preocupado? Será criada alguma medida de apoio?
É fundamental que a atividade desportiva, também competitiva, possa acontecer. Temos trabalhado com a Direção-Geral da Saúde, com as federações desportivas, com o Comité Olímpico, com a Confederação de Desportos de Portugal para poder dar passos no sentido de ir ajustando e abrindo esta retoma. O facto de poderem treinar significa que a prática regular dos clubes pode acontecer.
Os exames do Secundário vão manter o mesmo modelo de perguntas obrigatórias e opcionais no próximo ano?
Muitos países não fizeram acesso ao Ensino Superior (França, Reino Unido, Suíça), outros como Espanha ou Itália fizeram passagens administrativas. Em Portugal, entendeu-se, pelo menos, manter a espinha dorsal do acesso. Naturalmente a avaliação externa do próximo ano vai estar necessariamente ligada às aprendizagens essenciais, tanto exames como provas de aferição. É a forma de criar justiça sobre o que vai ser ensinado neste próximo ano.
Mas o modelo vai ser mantido?
Temos de entender o que vai acontecer ao longo do ano, mas necessariamente teremos de ter na avaliação externa um foco essencial nas aprendizagens essenciais, isso é que é o mais importante.
O Ministério anunciou em abril que iria fazer um levantamento do número de alunos sem computador ou acesso à Internet em casa. Quais foram os resultados desse inquérito?
As escolas conhecem esse universo. O PS tinha a universalização do acesso no programa eleitoral, o Ministério na preparação deste programa de Governo pôde incluir essa estratégia para esta legislatura. Com a chegada da pandemia todos entendemos que era necessário acelerar o processo. O Governo está a trabalhar para que todos os alunos da escolaridade obrigatória nas nossas escolas públicas possam ter um computador e acesso à Internet. Esse processo já se iniciou e durante 1.º período vamos ter a distribuição de 100 mil computadores com conectividade, a começar pelos alunos da Ação Social Escolar. A escola digital é muito mais do que a existência de máquinas e conectividade, está associada à formação de docentes e também à desmaterialização dos manuais escolares, muito importante para que possamos fazer essa transição. É importante dizer que ao longo dos últimos meses muitos computadores foram distribuídos pelos nossos alunos, pela sociedade civil, alguns pelas autarquias, que terão agora algum ressarcimento desse esforço que fizeram através de fundos comunitários.
O primeiro-ministro prometeu essa universidade de equipamentos e acesso no arranque do ano letivo. O que falhou?
Mais importante é irmos fazendo chegar às escolas esses computadores. Nunca voltaremos à situação em que estivemos no dia 16 de março. Os constrangimentos de acesso são evidentes. Neste momento, metade do Mundo pensa adquirir computadores para os sistemas educativos ou para poder fomentar que o teletrabalho exista efetivamente, o que leva a uma batalha pelo mercado dos computadores, mas isso não nos enfraqueceu de podermos chegar às escolas nos tempos vindouros para que os nossos alunos e professores possam ter acesso. Volto a dizer: a escola digital é muito mais do que a existência de um computador que tem uma câmara, um microfone e altifalantes para poder comunicar com as pessoas, sendo isso também importante nesta altura.
Cidadania e Desenvolvimento vai manter-se como disciplina obrigatória do 5.º ao 9.º ano? Admite rever partes do currículo?
É preciso dizer antes que a disciplina já existia nos governos liderados por Pedro Passos Coelho. O que posso dizer é que nunca como hoje foi tão premente e necessário haver uma verdadeira Educação para a Cidadania. Quando temos um referencial relacionado com a Saúde e entendemos bem que a literacia para a saúde pode ser a salvação de toda uma sociedade, quando temos um referencial para o risco que ajuda as nossas crianças e jovens a entenderem os riscos associados aos maremotos, à erosão da costa ou aos incêndios florestais. Obviamente que o livre arbítrio das famílias continua a existir, mas não podemos enquanto sociedade demitirmo-nos. Depois, existem tratados globais, como os que abordam os direitos humanos ou das crianças, que não são nem referendáveis, nem opcionais. São um compromisso do estado democrático e de direito em que vivemos e como sociedade só podemos dizer que sim. Vacilar e pensar que podemos dizer que não, significa vacilar como civilização, isso não tenho dúvida nenhuma.
Estes dois alunos, cujo pai alegou objeção de consciência para eles não frequentarem essas aulas, estão a ser punidos?
Esta discussão não é sobre estes dois alunos. Infelizmente, uma parte da sociedade portuguesa que se tem demonstrado reacionária tem tido nos últimos anos uma agenda bem clara para instrumentalizar algo importante que é a Educação para a Cidadania, para fazer uma certa dialética política, não digo partidária, que vai alimentando extremismos, que vai alimentando facetas da nossa sociedade que vão singrando noutros países. Basta olhar para o que se passa no outro lado do grande charco tanto a norte como a sul, para entendermos que também foi por aí que principalmente tudo começou com o movimento “deixem as nossas crianças em paz” e com a ideia de que a escola única e simplesmente existe para ministrar um conjunto de conteúdos e que a cidadania não parte da escola. Tendo de partir necessariamente também das famílias.
A disciplina está a ser alvo de uma campanha?
Se nos lembrarmos do que se passou no ano passado com as casas de banho, se nos lembramos das questões ligadas com a interculturalidade ou polémicas que aparentemente surgem do nada, entendemos que basicamente a instrumentalização da Educação para a Cidadania e desta disciplina em concreto, Cidadania e Desenvolvimento, mostra que o que está por trás de tudo isso é uma outra campanha de criação de movimentos extremistas que acabam por mostrar que têm outro tipo de agendas para uma sociedade que não é claramente a sociedade que eu quero.
Por que razão o Ministério demorou dois anos a decidir?
Quero dizer algo de forma muito inequívoca: não há, nem nunca houve ou haverá qualquer intenção de penalizar estes alunos de forma concreta, assim como nunca houve, há ou haverá de menosprezar uma das nossas facetas curriculares. Cidadania e Desenvolvimento é uma disciplina de corpo inteiro. O que o Ministério fez foi auxiliar as decisões da escola quando a escola assim o quis. O sucesso escolar e a equidade do nosso sistema educativo são absolutamente centrais para todas as crianças, incluindo estas.
O próximo Orçamento será reforçado?
Pudemos reverter os cortes sofridos durante a troika e nestes últimos quatro, cinco anos tivemos um aumento de quase mil milhões de euros. O robustecimento gradual tem sido feito em apostas claras como a Educação Inclusiva ou o Pré-Escolar. Por outro lado, a vinculação de todos estes trabalhadores tem um custo associado. Também temos tido uma aposta clara, através dos quadros de financiamento plurianual, no Ensino Profissional e vêm aí novos instrumentos.
Quais?
Teremos um novo quadro de financiamento plurianual com novas prioridades, mas também teremos este instrumento de resiliência e recuperação que só existe porque temos esta pandemia. A bazuca no caso da Educação vai ser uma forte aposta no Ensino Profissional. Sabemos bem que o Ensino Profissional se tem demonstrado, tanto em Portugal como no resto do Mundo, o principal motor do sistema educativo, mas também do sistema de emprego, empresarial e da melhoria da nossa administração pública. Neste momento, 43% dos alunos terminam o Secundário por esta via, mas temos o objetivo de chegar aos 50%. É importante fazermos esta modernização da oferta e correspondermos ao que a indústria, nomeadamente a indústria 4.0, nos pede: cursos de robótica, eletrónica, inteligência artificial ou gestão de dados, por exemplo. Áreas que nesta pandemia acabaram por ter uma preponderância cimeira. A bazuca também vai fazer uma forte aposta na contratação de formadores especializados, na reciclagem em termos de literacia do próprio corpo docente e ainda na modernização dos equipamentos das escolas.
Essa bazuca já tem um valor?
Terá de ser suficientemente robusto e quero acreditar que vamos poder alocar mais de 500 milhões de euros para que o Ensino Profissional possa dar um salto de qualidade na oferta e termos um verdadeiro sistema de antecipação das necessidades para formar mais rápido e melhor. Esta é uma mudança absolutamente sistémica, que vai ter consequências imediatas no emprego, por estes cursos terem alta taxa de empregabilidade, não estamos a falar em aumentar a oferta em dez cursos aqui e 20 cursos ali.
Tem outras prioridades em termos de investimento?
A escola digital é um grande investimento que terá de ser continuado, mas existem outros programas que têm de ter prioridade. Há portugueses que ficaram sempre para trás. Os inquéritos que se fizeram em 2017 demonstraram que cerca de 300 mil não têm nenhum tipo de qualificação, nem nenhum tipo de numeracia e literacia básica. Obviamente que isto não permite nenhum processo de inclusão e vamos lançar um programa nacional de literacia para adultos.
Qual é a vossa meta?
Era muito importante que este programa chegasse a 50 mil pessoas até 2025. É audaz, mas falamos de literacia digital quando estas pessoas não têm literacia suficiente para digitar um número de telemóvel. E nem todos são idosos.
Factos são a matéria-prima da ciência. A política vive muitas vezes de meias verdades. Como é que o cientista se adaptou à política?
É verdade que a ciência vive de factos e que vive sobretudo da verdade. Também é verdade que as meias-verdades, em regra, revestem-se de inverdade. Ora a política não pode deixar de viver de factos nem da verdade, sob pena de estarmos a falar de um sucedâneo da política, não da ferramenta das grandes realizações que queremos que seja. Por isso, e por muito que tenha de usar a gravata, não dispo completamente a bata que fez de mim cidadão pleno e que me deu tanto.
Tem saudades da bata?
Todos os dias. E continuarei a ter. É uma porta que um dia poderá reabrir-se, quando deixar a política. Ainda que nem sempre se abram as portas mais expectáveis.
Trocou uma carreira sólida e reconhecida na investigação por uma pasta muito complicada. O que o fez decidir? O que trouxe de novo à política?
Não quero esquecer nunca o momento em que tomei a decisão. Tinha todos os graus de liberdade para continuar na minha ciência. Era feliz, realizado, fazia coisas consideravelmente importantes, era reconhecido e vivia em Cambridge, cidade de que verdadeiramente gosto. Mas tendo todos os graus de liberdade para dizer que não, disse que sim. Trouxe-me aqui um sentido de missão. Penso que trouxe para a política uma certa forma de viver essa missão – com o coração e o cérebro, 24 horas por dia, sete dias por semana e 365 dias por ano.
Está disponível para um terceiro mandato?
A renovação para um segundo mandato demonstrou que há pelo lado do primeiro-ministro confiança no trabalho do Ministério. Pela minha parte, que se mantém o compromisso com a continuidade da missão. Quem aceita a primeira pode ir ao engano. Quem aceita a segunda vez já não vai engano. Em situações extremas pode até dizer-se que ou é louco ou está apaixonado pelo que faz.
Também se diz que não há duas sem três.
(sorri) Na minha vida, olho sobretudo para o horizonte. Neste momento, estou comprometido com este governo constitucional e com o primeiro-ministro, que é o responsável por eu aqui estar. E estou também comprometido comigo e em continuar desta forma abnegada. Ser ministro da Educação, pelo menos como eu o entendo, implica abnegação. De manhã, à tarde, à noite, de madrugada.
De um a vinte, que nota dá o ministro ao ministro?
Não dou notas a mim mesmo e tenho o cuidado de não dar notas aos outros. Quem tem de me classificar são os outros. Nas áreas que tutelo, espero que entre todos possamos construir as bases que permitam mais resistência e resiliência, sobretudo em momentos como este, em que a sociedade e o mundo das liberdades precisam de robustez.
O que imagina que pensam de si os alunos?
Muitos dos alunos identificam-me como alguém jovial e novo, uma imagem que lhes é estranha tratando-se de um decisor político. Entre nós, a ligação é automática, também porque nas visitas a escolas comporto-me como em casa – de uma maneira natural. Oiço dezenas de vezes “Olha o Tiago” ou “Olha o ministro Tiago”. É algo que nunca entendi como desrespeitoso, mas como uma necessidade desses alunos fazerem pontes comigo. Independentemente de terem 9, 12 ou 14 anos, sinto que lhes inspiro familiaridade.
E o que pensam de si os pais?
Tento chegar às pessoas, transmitir-lhes confiança, segurança, num momento como este e, sobretudo, fazer pontes com os vários grupos que fazem parte do sistema educativo. Entender o que cada pessoa pensa de mim não é algo que me mova. Mas espero que quando me ouvem na televisão, quando acabam por usufruir das nossas políticas públicas, como é a gratuitidade dos manuais escolares, por exemplo, sintam que no meu lugar está alguém que lidera uma equipa de quase 150 pessoas empenhada diariamente de forma abnegada, para que em casa possam sonhar que os filhos terão as oportunidades que eles não tiveram.
Fazer pontes implica diplomacia. É uma pessoa de pontes?
Faço pontes, tento destruir muros e sempre que foi preciso chegar mais rápido ao outro lado até fiz túneis.
E quando é que não faz pontes?
Quando vejo que do outro lado há quem tenta dinamitar, de forma reiterada, as fundações que tento construir. Nesses casos, tento outra estratégia.
Por exemplo?
Acontece todos os dias. No Governo, quando com colegas tento pontes para que trabalhemos em conjunto, com os atores da educação e com todos aqueles que tento cativar nacional ou internacionalmente. Por vezes é mais fácil; por vezes mais difícil. Mas é importante mostrar sempre que acreditamos no que estamos a fazer.
Que peso político tem um ministro jovem, sem história na política e no partido, nem força do aparelho partidário?
E até acrescento: o mais jovem de sempre a chegar à cadeira, o mais jovem daquele Governo, alguém que não faz parte da máquina embora próximo do PS, um estrangeirado, 16 anos de ausência, estigma para uma certa sociedade portuguesa burguesa e intelectual, alguém fora da caixa e das políticas públicas da educação. Bastava apenas uma destas alíneas para não ter dado o passo que dei. Apesar de todas essas condicionantes, aqui estou. O tempo que tenho no cargo é a exata medida do meu peso político. Que representa tudo ou nada.
Como é a relação com António Costa?
É próxima porque ele é um homem próximo.
Quão próxima?
Tenho por António Costa uma admiração real e concreta. Soube sempre confiar em mim e eu sei, desde o primeiro momento, que tenho de e quero confiar nele. Tomei a decisão de deixar a minha vida porque António Costa me disse que contava comigo. E senti nesse momento que era verdade.
Concorda com o endosso que António Costa fez a Luís Filipe Vieira?
Esta é a primeira pergunta de toda esta entrevista a que não vou responder.
Referiu “o espírito de missão”. Que marca gostaria de deixar?
Nunca tive o ímpeto de deixar marca de autor no ministério de Educação. Seria começar pelo telhado. Em políticas públicas, as marcas resultam de forma natural do processo contrário. É muito ingrato o mundo da educação. As mudanças notam-se a dez, vinte anos, e com a sucessão de governos e de políticas, com os constrangimentos e contingências da economia e no emprego, acabam por não ser mensuráveis. Apesar de ingrato é, porém, importante que continuemos a trabalhar, a alimentar esta frase, que diz tanto do que queremos: um sistema educativo que trabalhe para o sucesso educativo de todos, com equidade para todos. Esse é o maior desafio. Durante muito tempo, o nosso sistema educativo permitiu que alguns de nós ficassem para trás. Que ninguém fique para trás é a grande mudança.
A pandemia trouxe à tona desigualdades que desconhecia?
As desigualdades estão diariamente à vista de todos os operadores. São conhecidas. A pandemia agudizou e exponenciou as que já existiam.
Receia que o abandono escolar possa aumentar?
Esperamos que não. De acordo com os dados do segundo trimestre de 2020, alcançámos os 10% que tínhamos contratualizado com a Europa. Mas nenhum de nós pode descansar. Quando algo não lhes corre bem na prática desportiva e escolar, os jovens são candidatos ao abandono. Temos de colocar em campo todas as ferramentas para que tal não aconteça. Esta pandemia veio reforçar e demonstrar às famílias a importância da escola. Quando a 12 de março afirmei em conferência de imprensa que ninguém ia ficar para trás, nem ninguém estava de férias, fui muito criticado. Um mês depois, havia um coro a dizer o mesmo. Não deixar ninguém para trás pode ser considerado um chavão. Nesse caso, viva os chavões.
Quem o conheceu em Coimbra fala de um estudante “à esquerda da esquerda”. Ideologicamente, onde se situa?
Sempre fui e quis ser um homem de esquerda. Sempre entendi o que implicava – o compromisso com um conjunto de preocupações e até de orientações para a nossa vida. Continuo a ser o mesmo homem necessariamente muito à esquerda que viveu em Coimbra. É aí que me sinto.
“Muito à esquerda”?
Muito à esquerda. Mas acho que o Partido Socialista, na sua essência, e o socialismo, na sua essência, são de certa forma uma maneira de viver à esquerda.
De que maneira reage à critica alguém que foi consensual como investigador e está agora num ministério que gera tantos inimigos?
Quando se faz investigação tem-se o livre arbítrio de mostrar só o que corre bem. Na política, não temos essa possibilidade. No momento de escolha ninguém tem real consciência do que implica este cargo. Podemos ter consciência do que é a prática comum relativamente a titulares de cargos públicos desta natureza, mas pensamos que é com os outros, não é connosco. Muitos detratores acabam por vociferar o descontentamento, a agenda pessoal e das organizações que representam porque faz parte da cartilha e de um modo de atuar. Por vezes, tendo a entender essa forma de atuação como uma forma dialética de reivindicação, o que é sadio. Sendo que o vilipêndio não pode ser nunca uma forma de atuação.
Do que se tem dito sobre si o que mais lhe tem custado?
Terem posto em causa a minha carreira académica. Fizeram-no porque sabem que é a minha fundação mais forte. Contextualizando, percebe-se o ataque. A educação foi apelidada o cimento da geringonça. Eu tinha acabado de chegar, jovem e aparentemente periclitante, vinha sem experiência política, sem entorno partidário que me protegesse, podia bem ser o porta-aviões onde o torpedo cairia com maior intensidade. Nesses momentos, tudo vale. Coloca-se em causa o que é mais grato para as pessoas. É um vilipêndio atroz.
Como reage?
Com muita naturalidade. Ajuda muito ter uma muralha de aço nos que me são mais próximos – o meu gabinete, a minha equipa mais próxima, aqueles que trabalham comigo nas várias secretarias de Estado, os amigos e a família. E o espelho, porque o espelho nunca mente. Quando nos olhamos, percebemos quão reais ou irreais podem ser esses vilipêndios e se quem nos insulta o faz com bonomia ou fel.
Porém, há quem o descreva arrogante e com um “ego gigantesco”.
Não me identifico egocêntrico nem com uma estima de tal forma gigante que tenha dificuldade em lidar com o ego. O que eu tenho é muita dificuldade em colocar um limite aos limites que existem. E isso faz com que me empenhe e acredite verdadeiramente no que me comprometo. Característica pouco comum e na qual as pessoas, talvez por isso, veem laivos de arrogância. Não, são laivos de compromisso. Também a forma como me expresso, como falo, a expressão corporal, com um gesticular constante que advém de características próprias da minha vida, a assertividade e um sotaque muito marcado podem associar-me à arrogância e a uma atitude de ataque.
O que já aprendeu com a política?
Mais do que uma cartilha de novidades veio reafirmar que muitas das facetas positivas que temos na vida passada se mantêm úteis. Falar com transparência, criar relações de afetividade com as pessoas que me rodeiam, ser natural, enfim, características pouco associadas à vida política podem ajudar muito. Considero-me um normopata e é essa condição que tenho reafirmado no meu tempo político. As políticas não têm de ser feitas por pessoas diferentes. Têm de ser feitas por pessoas normais e quanto mais normais forem e mais facetas da vida anterior puderem trazer, melhor para o exercício político.
O sotaque é uma marca distintiva. E não parece minhoto. É um misto Viseu/Bragança.
Não me diga isso. Sou um alto minhoto de gema: digo “osjerres e osjolhosnosjolhos”. Ter crescido em Paredes de Coura até aos 14 anos, ter passado três anos em Braga, o tempo de Coimbra, mas, acima de tudo, ter crescido perto de Espanha e na presença muito forte do castelhano, deixou marcas no sotaque. Nunca me esforcei para me libertar dele nem para o marcar. Nunca insisti nem nunca o evitei.
Este sotaque tem custos para um ministro?
No início olhavam para mim com muita desconfiança. Depois do meu primeiro discurso no púlpito da Assembleia da República, já ministro, uma figura nacional, um intelectual que não vou nomear, enviou-me a seguinte SMS: “Ter um ministro da Educação em Portugal com tal sotaque é um avanço civilizacional para o nosso país”. Mais tarde, em conversa, disse-me que Portugal é muito normativo e centrado num sítio chamado Lisboa, cidade de que muito gosto e onde vivo, reconhecendo que temos um país bicéfalo – Lisboa e Porto nas suas idiossincrasias – e que tem em relação ao sotaque um entendimento muito diferente do que existe noutros países. Espanha, onde os sotaques são mais potenciados, ou Inglaterra, onde são até incrementados.
Em Portugal são um handicap?
Tenho a certeza absoluta de que são uma barreira. E que para ganhar credibilidade e afirmação temos primeiro de passar a barreira da desconfiança e descredibilidade. O sotaque da grande Lisboa é o normativo para atores nacionais e parte da opinião pública. De cada vez que digo Paredes de Coura as pessoas sabem que sou de Paredes de Coura. Não um sucedâneo de alguém que nasceu ali. E isso deixa marcas.
Há pouco atribuiu o hábito de gesticular a uma particularidade da vida. Penso que se referia à doença do pai, que a certa altura ficou afásico. Em que medida determinou a construção da sua personalidade?
O meu pai tinha 29 anos quando um AVC lhe deixou sequelas graves. Eu tinha 5 anos, o meu irmão meses, a minha mãe 27. Foi preciso reaprendermos a comunicar. Foi uma mudança radical. Uma terra pequena, onde todos se conhecem, alguém que é respeitado por todos perdeu a capacidade de comunicação e assim se manteve o resto da vida. Nós, os filhos, passamos a fazer esse relevo geracional. Passámos a conversar numa linguagem gestual não formal. Uma certeza tenho: sou como sou por ter tido alguém tão diferente no meu meio familiar mais íntimo. A minha atenção à diferença e o sentido da responsabilidade vêm daí. Com seis, sete anos, tinha de tratar de tudo. (comove-se)Tinha de ser capaz. Com seis, sete anos tratava de muitas coisas. Quem tem de lidar com situações extremas sabe que as crianças não podem ser tão crianças nesses momentos. As patifarias ou irreverências próprias da idade têm de transformar-se em responsabilidades.
A escolha de curso teve a ver com a circunstância familiar?
Sempre quis ser um homem das Ciências Naturais e de Biomedicina. Mas por vezes penso nisso. Se o meu percurso de vida e situação familiar não terão tido um papel nessa decisão.
A praia de Moledo do Minho é uma marca desses anos.
O meu pai trabalhava nas Finanças de Caminha e a minha mãe era professora do primeiro ciclo. Tínhamos lá uma casa que passámos a utilizar com frequência depois da doença do meu pai. Até lá, a família viajava muito pela Europa.
O que lhe disse a mãe professora quando foi convidado para ministro da Educação?
O que diz sempre – que o que eu decidir está bem decidido. Nunca me diria que discordava. Não estando sempre de acordo comigo, tenta algum distanciamento do ministro para não ter o distanciamento do filho. Acredito, no entanto, que a escola que temos feito está próxima da escola que ela sonhou. Sobretudo no que diz respeito à equidade.
Sendo frequentador assíduo do Festival de Paredes de Coura, como olha para os e feitos da pandemia nesses eventos?
Sou mais do que frequentador. Sou fruidor. E olho com muito custo. As pessoas dali têm no festival um porto de abrigo. É a ocasião fantástica para receber os amigos, mas sabemos que este é um ano atípico.
Um fruidor de festivais abstémio. É raro.
Talvez por isso frua de forma completa, ao contrário dos que por vezes bebem.
Em Coimbra, diz-se, foi um boémio. Um boémio abstémio não é uma contradição?
Sempre tive todos os graus de liberdade na vida. Aos 15 anos, vivia sozinho em Braga, com toda a liberdade do mundo. Muitos começaram a viver para se libertarem. Nunca tive necessidade. Nunca bebi e não quero experimentar. A capacidade extremosa de nos divertirmos não é proporcional ao consumo do álcool. Costuma até ser o contrário.
O que o descomprime?
A boa música, a companhia dos bons amigos e a consciência total.
Teme as más figuras?
Não é por isso. Todos nós fazemos más figuras nas nossas vidas.
Que músicas já ouviu hoje?
Músicas de todos os dias. Sérgio Godinho, que é a minha grande referência musical. Mas também ouvi Violeta Parra e Mercedes Sosa. A música tem em mim um efeito retemperador. Não me deixa esquecer quem eu sou. Ouço com muita intensidade e não sabendo as letras completas de cor, em cada conversa da minha vida salta-me imediatamente uma letra de música.
Gosta de ler?
Muito, sobretudo na língua original. E gosto muito de poesia. Tenho em Fernando Pessoa um companheiro para a vida.
E ainda faz muito desporto?
Hoje, não. Até voltar para Portugal, ia trabalhar de bicicleta. Fazia 40 minutos diários.
Hoje não conseguia.
Não ponha em causa a capacidade física do ministro da Educação. Ficariam todos surpreendidos. Não tenho, claro, a capacidade física que tive no passado. Fiz muito andebol e, sobretudo, muito karaté. Essa modalidade marcou-me muito.
Algum dia exercitou fora do tapete?
Sou muito amigável e amistoso. Nunca bati em ninguém.
Descrevem-no um otimista. Confirma?
Sim, sendo que nunca me contento com nada. A minha vontade de fazer sempre mais é insaciável. Sinto que tenho pouco o sentido da recompensa. Defino-me como um eterno e constante insatisfeito e a idade tem intensificado isso. Essa exigência, comigo e com os outros, põe à prova as relações interpessoais.
Em 2003 foi raptado em Campinas, no Brasil. Fale-nos desse pesadelo.
Foi algo que me pareceu fora da realidade. E talvez por isso não tive bem a consciência do perigo. Os meus amigos brasileiros, sim, estavam em pânico. Tive o cuidado de falar pouco e em português do Brasil, para que não entendessem que tinham em mãos um estrangeiro e tirar disso mais vantagens. Foi uma experiência que, não tendo sido traumática, me marcou. Um dia contarei as peripécias.
Estava nos EUA no 11 de setembro, era vizinho da estação de Atocha (atentado terrorista em 11 de março de 2004)…
Esse 11 de março foi o dia mais duro da minha vida. Nunca esquecerei. Cheguei ao Instituto de Investigação e estava uma colega a verificar a lista dos recursos humanos.
Falemos de futuro. Quer continuar na política?
Sempre fui recetivo ao que aí vinha. Por isso, tive esta inflexão, de que nunca me arrependi e isso sinto-o verdadeiramente. Há algo que eu sei: todo o tempo da bata vive e viverá em mim e este tempo da gravata vive e viverá em mim.
Um cargo autárquico é uma hipótese? A Câmara de Braga, por exemplo.
Tenho uma ligação muito forte a Braga. Tenho um enorme amor à cidade, mas sou ministro da Educação e essa hipótese nunca se equacionou. Nem no passado, nem no presente. Relativamente ao que aí vem, não o antecipo. Há na política quem tenha grandes certezas, que desde cedo construíram carreiras e aliados. Muitos desde os 15 anos. Pelo contrário, nunca na minha vida tive certezas em relação ao que ia fazer. Fui muito feliz fazendo ciência, tive muitos e bons momentos eureka, e com a mesma naturalidade aceitei este cargo. Um dia chegará o dia seguinte. Não vale a pena antecipá-lo sendo certo que só farei as tarefas que me fizerem feliz e depois de ter a certeza de que tenho unhas para tocar essas guitarras.