sábado, 19 de setembro de 2020

A elite e os pais radicais (1)

Um clube da elite portuguesa tomou partido pelo casal que luta para que os seus filhos possam faltar à disciplina Cidadania e Desenvolvimento sem chumbarem o ano lectivo.

A argumentação? Diz essa elite que as matérias ensinadas na nova disciplina são “uma ideologia” da qual é legítimo discordar, que a sua liberdade de consciência deve ser respeitada e que os pais têm direito à objecção de consciência.


Estão a misturar alhos com bugalhos. A objecção de consciência refere-se a acções, não a ideias. Implica agir, fazer uma coisa. Sou médico e acredito que a vida é um bem intocável, logo, não quero fazer um aborto e peço objecção de consciência — não quero fazer aquilo. Sou jovem num país onde o serviço militar é obrigatório e acredito que é ilegítimo usar meios violentos contra outros, logo, não quero mexer em armas nem fazer a guerra e peço objecção de consciência — não quero fazer aquilo.

Desde quando objecção de consciência se aplica a uma ideia da qual discordamos? Posso estar distraída, mas nunca vi. Discordo do programa de História — porque critica o Estado Novo e eu acredito que a ditadura de Salazar foi boa ou porque critica o estalinismo e eu acredito no comunismo. O que faço? Digo aos meus filhos para faltarem a História e a seguir invoco o direito à objecção de consciência? Essas ideias violam a minha liberdade ou, simplesmente, eu sou contra essas ideias? Discordo da matéria de Biologia — porque expõe a teoria de Charles Darwin como facto científico e eu acredito que o ser humano é uma criação de deus. Digo aos meus filhos para faltarem às aulas e invoco o direito à objecção de consciência?

Até em casos de acção — como actos médicos para salvar vidas — o pedido de objecção de consciência é muitas vezes negado pelo Estado. Ainda há pouco um tribunal britânico decidiu que um bebé deveria receber uma transfusão de sangue contra a opinião da mãe que, por ser testemunha de Jeová, se opôs ao procedimento, dizendo que a transfusão viola a sua consciência, a sua filosofia e a sua forma de ver o mundo. O mesmo para os pais que são contra a vacinação. É essa a sua teoria, a sua ideologia, a sua filosofia. Aqui, como noutros casos, o padrão é o bom senso de o Estado impedir o radicalismo individual. 

Os pais de Vila Nova de Famalicão protestam contra informação, saber, tomar conhecimento. Não querem que os filhos ouçam ideias que consideram erradas, chocantes e perigosas. Dizem que a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos tem um artigo (26º) e um parágrafo (3.º) que diz que os pais têm “a prioridade do direito de escolher o género de educação” dos filhos. Duvido que em 1948 a ideia dos autores do texto tenha sido a escolha das disciplinas. Num ensaio publicado pelo Conselho Internacional de Arquivos está contada parte da história dos bastidores da escrita desse artigo: “O contexto do parágrafo 3.º é a experiência nazi”, escreve Trudy Huskamp Peterson. “O representante da Holanda ‘expressou o horror que os países ocupados pelos nazis continuavam a sentir em relação à ideia de que o Estado podia obrigar crianças a serem moral e intelectualmente deformadas pelo partido no poder’.”

É uma história interessante, com a URSS a votar contra e outras peripécias que podem ser usadas como argumentos para diferentes lados. Mas que mostra o contexto histórico. Usar este parágrafo para decidir as disciplinas do ensino obrigatório que os nossos filhos devem ter é um argumento esticado. Tanto mais, que a Convenção sobre os Direitos da Criança (de 1989 e em vigor em Portugal), muito centrada na educação, não inclui nenhuma referência ao papel ou liberdade de os pais escolherem o tipo de educação dos filhos. 

A declaração universal que usam como argumento faz aliás parte da disciplina que os pais de Famalicão contestam. ​Estranhos tempos estes em que a elite conservadora portuguesa defende quem não quer uma disciplina cuja “matéria” nuclear são dez dos mais belos textos escritos nos últimos 100 anos. Falo dos documentos usados pelo Ministério da Educação como textos de referência para as aulas de Cidadania e Desenvolvimento: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, a Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino, a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Carta do Conselho da Europa sobre Educação para a Cidadania Democrática e para os Direitos Humanos, os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável e a Educação para os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável. São dez textos progressistas e, por isso, audazes e utópicos.

E, claro, falta o bicho-papão da sexualidade, incluído na matéria da nova disciplina. Lá iremos para a semana.

Bárbara Reis

Fonte: Público

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