A disciplina de Cidadania e Desenvolvimento cuja frequência obrigatória surge contestada no manifesto subscrito por quase 100 personalidades portuguesas não é bem uma disciplina, é antes “um complexo disciplinar”, para usar a expressão do presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), Manuel Pereira. No seu núcleo, alberga temáticas que vão dos direitos humanos, à igualdade de género, passando pela educação sexual, ambiental e rodoviária, literacia financeira e bem-estar animal, entre outras. Independentemente das alterações introduzidas por cada escola ou agrupamento, no quadro da respectiva autonomia e flexibilidade curricular, o derradeiro objectivo é ajudar a preparar os alunos “para as múltiplas exigências da sociedade contemporânea”, como se lê no documento enquadrador do Ministério da Educação (ME).
Incutir nos alunos o “respeito pelos valores democráticos e básicos e pelos direitos humanos, tanto a nível individual como social” surge, no referido documento, como um dos objectivos que estiveram na base da criação desta disciplina, para cuja definição o Governo criou, em 2016, um grupo de trabalho. Integrando representantes da Direcção-Geral de Saúde, do Alto-Comissariado para as Migrações e da Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, para citar apenas três exemplos, este grupo desenhou uma estratégia adaptada para os diferentes ciclos de ensino, mas sempre em torno da promoção de valores como os da cidadania, igualdade de género, não discriminação e interculturalidade, inclusão das pessoas com deficiência, além da educação para a saúde e para os direitos sexuais e reprodutivos.
“Esta ideia de haver um espaço curricular na escola onde as crianças falam da vida, das suas relações interpessoais, da igualdade de género, do seu bem-estar ou do bem-estar do planeta, vem dos anos 90 e já teve variadíssimos formatos. E parece-me uma óptima ideia, porque a escola não existe só para ensinar Português e Matemática”, contextualiza a psicóloga Margarida Gaspar de Matos, professora da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Nova de Lisboa e coordenadora em Portugal dos estudos Health Behaviour in School-aged Children, que a Organização Mundial de Saúde repete a cada quatro anos. Num momento em que os alunos regressam à escola, depois de seis meses metidos em casa, a psicóloga defende, aliás, que esta disciplina devia funcionar como “um espaço onde os miúdos pudessem falar com adultos de referência sobre os medos instalados por causa da pandemia, até para baixar a ansiedade geral da população”.
E, porque se trata de garantir que a escola pública ajude crianças e jovens a tornarem-se “cidadãos democráticos, participativos e humanistas”, promovendo “a tolerância” e suprimindo “radicalismos violentos”, como se lê no documento da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania referente a esta disciplina, é que nos documentos de referência da mesma se incluem documentos tão basilares como a Constituição da República, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Sobre os Direitos da Criança ou os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável, das Nações Unidas. E por isto também é que Margarida Gaspar de Matos não vê razões para que a sua frequência seja facultativa. “Tudo isto tem que ver com a regulação da vida na sociedade, ensinando os miúdos a não roubar, a não estragar a não andarem à pancada…”, descomplica a especialista, para quem o debate agora desencadeado é “estéril e manipulado”.
Um problema que “não existe"
Sendo conteúdos transversais e da responsabilidade do professor titular nos quatro primeiros anos de escolaridade, a Cidadania e Desenvolvimento ganha direito a ser uma disciplina com um professor específico a partir dos 2.º e 3.º ciclo do básico e do secundário. E desde que, no ano lectivo de 2018/19, começou a ser ministrada em todas as escolas, a disciplina é sujeita a avaliação, tal como todas as restantes. No caso dos cursos de educação e formação de jovens de nível básico e secundário, a avaliação é tida em conta no cálculo da média final.
Do mesmo modo, havendo temas que são obrigatórios para todos os níveis de ensino, como a saúde, a interculturalidade, os direitos humanos ou a educação ambiental, outros, como os media, a literacia financeira e a segurança rodoviária, integram apenas dois ciclos do ensino básico. Quanto à educação sexual (prevista já na lei desde 2009 mas que só pontualmente saiu do papel, e quase sempre nas disciplinas de Ciências Naturais e de Biologia), Margarida Gaspar de Matos lembra que “o professor formado para esses conteúdos não vai tomar posição nem dar a sua opinião sobre quando e como é que o aluno vai iniciar a sua vida sexual”.
Sobre este aspecto, e ainda a propósito da polémica desencadeada a partir do caso dos dois irmãos de Vila Nova de Famalicão que faltaram a todas as aulas da disciplina por opção dos pais, o representante dos directores das escolas diz admitir que “haja áreas que alguns pais tenham objecções a que sejam trabalhadas nas escolas”. Nestes casos, defende, “os encarregados de educação devem poder negociar com os professores a possibilidade de os alunos trabalharem umas áreas em vez de outras, desenvolvendo trabalhos autónomos e igualmente sujeitos a avaliação”. “É sempre possível trabalhar junto dos professores e da escola, no sentido de os alunos não estarem presentes quando determinados conteúdos estão a ser desenvolvidos e serem postos a trabalhar conteúdos alternativos, autonomamente”, preconiza Manuel Pereira, para concluir que não vê razão para se estar “a criar um problema que não existe”.
Fonte: Público
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