O Direito tornou-se o mais potente motor da Civilização. No mundo contemporâneo, não há alternativa à normatividade jurídica para regular a coexistência pacífica das culturas, dos povos e de toda a diversidade humana. Todavia, é conhecida a "poligamia" do Direito, sobretudo no plano nacional. Por um lado, a sua generalidade e maleabilidade prestam-se a possíveis argumentações contraditórias e ao "comércio" de jurisconsultos. Dizia-me, há anos, um reputado e conhecido Professor de Direito, a propósito de dinheiro: "Basta-me elaborar um "parecer", num fim de semana"... Por outro lado, não é raro a mentalidade dos Juízes sobrepor-se ao dever funcional e obrigação profissional de aplicar o Direito. Por exemplo, em 2006, o Supremo Tribunal de Justiça disse (por unanimidade): «Na educação do ser humano justifica-se uma correcção moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros. Será utópico pensar o contrário e cremos bem que estão postas de parte, no plano científico, as teorias que defendem a abstenção total deste tipo de castigos moderados». No Acórdão não se encontra nenhuma referência aos "direitos da criança" nem, portanto, à Convenção sobre os direitos da criança, que é o Direito superior aplicável. Noutro caso, um Juiz decidiu que uma criança vítima de maus tratos devia ser devolvida à família, considerando que o laço biológico deve prevalecer sobre o laço afectivo, e a criança acabou por morrer. Portugal já foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por causa de sentenças de Juízes ditadas pela sua "consciência" e preconceitos.
O Direito Internacional é mais fiel aos valores fundamentais da Ordem Pública Internacional, que devem ser também os de um Estado de Direito. São os direitos humanos, que se tornaram o Direito do Direito, Ética Comum da Humanidade. Entre eles, o direito à educação, que é um direito central na vida de uma criança e prioritário entre os direitos humanos. O direito à educação é um complexo normativo que inclui o direito à educação para os direitos humanos, de cuja ampla concepção internacional actual faz parte a educação para a cidadania, a educação para a vida sexual e reprodutiva, a educação ambiental, etc. Há uma Declaração das Nações Unidas sobre a educação e formação para os direitos humanos (2011) e uma Carta do Conselho da Europa sobre a educação para a cidadania democrática e a educação para os direitos humanos (2010).
Alguns elementos do objecto do direito à educação suscitam objecções de muitas famílias, em muitos países, alegando geralmente convicções religiosas. Por exemplo, nos EUA, em 1995, quando o Presidente Clinton quis enviar ao Senado a Convenção sobre os direitos da criança para ratificação, um grupo de Senadores Republicanos opôs-lhe uma Resolução onde se afirmava que a Convenção é «incompatível com o direito e a responsabilidade dados por Deus aos pais para educar os seus filhos». Os EUA são o único Estado Membro das Nações Unidas que não ratificou a Convenção. Subjacente a muita resistência cultural, sociológica, psicológica, aos direitos da criança está este entendimento: reconhecer direitos às crianças é retirá-los aos adultos. Por exemplo, o direito de aplicar castigos corporais aos filhos ou filhas; o direito de cumprir a escolaridade obrigatória em casa, para evitar a exposição às influências do ambiente escolar; o direito a que aprendam a narrativa bíblica da criação como alternativa à teoria da evolução; ou o direito à isenção da frequência de certas aulas, como a educação para a cidadania.
Este tipo de objecções invoca geralmente o terceiro parágrafo do Artigo 26 da Declaração universal dos direitos humanos, interpretado sem consideração pelos seus trabalhos preparatórios e com desconsideração do princípio sistemático, que tem em conta a evolução do Direito. No plano europeu, invoca-se também o Artigo 2 do primeiro Protocolo à Convenção europeia sobre os direitos humanos, menosprezando a sua interpretação teleológica pelos respectivos órgãos (a antiga Comissão e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos). Destas e outras disposições jurídicas semelhantes se pode dizer o que disse a primeira Relatora Especial sobre o Direito à Educação (Nações Unidas): «A Convenção Europeia sobre os Direitos Humanos é um documento antigo, adoptado em 1950, que não reflecte nem o direito à educação, tal como foi posteriormente definido no Direito Internacional dos Direitos Humanos, nem o ainda mais recente conceito de direitos da criança». Já em 1949, num comentário ao Artigo 26 da Declaração Universal solicitado pela UNESCO e referindo-se ao seu terceiro parágrafo, Jean Piaget, prominente figura da história da psicologia e da educação, escrevia com alguma ironia: «... há pais excelentes e outros que não são tão bons, e convém proteger a criança contra a vontade dos segundos. [...] A este respeito, se "toda a pessoa tem direito à educação", é óbvio que também os pais têm esse direito, que é igualmente "um direito prioritário"».
Sendo Portugal parte (reputada) nos principais instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos, a normatividade jurídica nacional não é susceptível de interpretações contrárias ao Direito Internacional dos Direitos Humanos a que o Estado está obrigado. No que respeita à educação para os direitos humanos, como educação ética, cívica e internacional, a liberdade dos Estados apenas tem como «limite que não pode ser ultrapassado» o princípio de não-doutrinamento, como disse o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, princípio que formulou nestes termos canónicos: Os conteúdos curriculares têm de ser propostos «de um modo objectivo, crítico e pluralista».
Há muita jurisprudência internacional e nacional convergente nesta conclusão: Não há "objecção de consciência" válida contra o direito à educação, contra a sua integridade normativa internacionalmente reconhecida e protegida como direito humano.
A. Reis Monteiro
Professor da Universidade de Lisboa
Fonte: DN por indicação de Livresco
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