Decidir com base em cada caso, só aplicar orientações como a da distância social que sejam adequadas à realidade de cada aluno, fazerem uso da sua autonomia para darem prioridade aos alunos que vão chegar mais frágeis ao próximo ano lectivo. Estas são algumas das prioridades apontadas pela psicóloga Vanessa Neves, que também adverte contra os perigos de se adoptarem medidas que já estão a ser anunciadas por algumas escolas, como os intervalos de cinco minutos. E aconselha as autoridades competentes a tomarem decisões que possam evitar este tipo de soluções como por exemplo, avançarem para uma revisão dos currículos.
Com 37 anos e 11 de profissão, sempre na área das necessidades educativas especiais, tem trabalhado com vários agrupamentos das áreas de Sintra, Loures e Odivelas. Muitos dos alunos que foi apoiando estão entre os que mais ficaram para trás nestes tempos de pandemia, seja devido a problemas cognitivos ou por falta de recursos económicos que os privaram do acesso às tecnologias. Estes alunos, e não só, vão chegar às aulas psicologicamente doentes e as escolas têm de intervir logo desde o início, alerta.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), e não só, tem alertado que muitas crianças e jovens vão regressar às aulas, depois desta experiência de confinamento, em situações similares à do stress pós-traumático e que por isso é preciso que as escolas estejam muito atentas aos sintomas….
E intervir logo desde o início em vez de ficar à espera que aconteça. E isto não é estar a fazer futurologia, é basearmo-nos naquilo que a investigação nos tem mostrado, que esta situação terá consequências a médio e longo prazo para as crianças e jovens. Vai haver imensos comportamentos disruptivos seja por parte de crianças com alguma necessidade específica, como da parte de outras. Estaria por isso menos preocupada com a recuperação do currículo e mais com a estabilização do estado emocional dos alunos.
É certo que em primeiro lugar estancamos o sangue, tratamos da ferida, mas depois temos de perceber que marca deixou essa ferida. E é isso que a investigação já feita nos tem mostrado. Há pessoas que estão muito preocupadas, que consideram que as escolas não deveriam abrir. Mas eu diria que em termos da saúde psicológica, porque não existe só saúde física, é essencial que os alunos regressem à escola. Há mesmo uma necessidade extrema de que regressem.
Mas as escolas não podem ficar paradas à espera de que surjam mais orientações ou recomendações, têm de trabalhar com a massa de que dispõem neste momento para se prepararem para diferentes possibilidades e têm excelentes profissionais para o fazerem. O desafio será muito mais do que recuperar aprendizagens. Os alunos que aprendem de forma regular, que estão dentro da norma, não vão ter grandes dificuldades em fazê-lo e aprenderem as novas regras das escolas. Em relação aos outros é que vamos precisar de ter grande atenção. Há crianças que vão voltar à escola com a preocupação extrema de poderem ficar doentes fisicamente, mas desconfio que muitas delas vão chegar à escola psicologicamente doentes.
Normas como o distanciamento social ou o uso permanente de máscaras são adequadas para estas crianças?
Penso que estas normas, quando estão em causa crianças com mais dificuldades ou com patologias mais pesadas, têm mesmo de ser avaliadas escola a escola e caso a caso. Para mim, enquanto profissional, não fazem sentido. Temos de saber pesar, pôr nos pratos da balança, e medir o risco. Pode ser muito arriscado, mas também o é o malefício que traz a estas crianças a falta de um contacto mais próximo, de um toque.
Em relação a estes alunos vão acontecer coisas muito distintas. Vai ser preciso muito cuidado a analisar caso a caso. Terá de ser sempre um acompanhamento individual. Porque há alunos que vão-se ressentir imenso com este afastamento. Estamos a falar de crianças que estiveram seis meses afastadas do ambiente escolar. E seis meses é muito tempo em termos de desenvolvimento destes alunos.
É com estes alunos que temos efectivamente de nos preocupar. E não me refiro só aos que tenham algum problema cognitivo ou de desenvolvimento, mas também aos que não têm o mesmo acesso à Internet, ao computador, do que alunos de famílias mais estruturadas e com mais capacidades. Pela minha experiência e pelo que me foi relatado por colegas meus, sei que muitos alunos ficaram à parte porque não tinham esses meios e, portanto, ficaram mais para trás ainda. Neste regresso à escola o nosso mote tem de ser o de individualizar o trabalho, através da análise caso a caso, e não o de criar uma bolsa de estratégias universais.
E as escolas têm autonomia para seguir esse caminho?
Todas as orientações que têm saído, seja da Direcção-Geral da Saúde, seja do Ministério da Educação, mesmo o recente manual para recuperação das aprendizagens, são isso mesmo: orientações. Percebo que causem alguma ansiedade, ainda há muitos ‘se for possível’ mas considero que tem mesmo de ser assim: ‘se for possível’. E termos a consciência de que as escolas têm uma enorme autonomia para tomar decisões e fazer as suas próprias regras em função da realidade escolar que vivem, dos alunos que têm, do número de estudantes que têm e da cultura escolar que têm.
É importante que as escolas se rodeiem de profissionais de diferentes áreas para ir tomando decisões concertadas. Já existe uma grande articulação com os centros de saúde, com a saúde escolar, e é essencial que esta seja agora reforçada.
As escolas têm estado a apresentar medidas, como por exemplo a de os alunos terem apenas intervalos de cinco minutos ou só terem um intervalo ao longo do tempo lectivo, para evitar que se cruzem. É possível aguentar o trabalho escolar com intervalos de cinco minutos?
Não, de todo. Os níveis de concentração e de atenção vão baixar brutalmente. Mas é bom que se deixe claro que não há nenhuma orientação nesse sentido neste momento, e mesmo que houvesse seria apenas isso, uma orientação. Ou seja, a menos que esteja legislado que as escolas têm de ter intervalos de cinco minutos ou que as escolas têm de ter os alunos todos separados, não há necessidade de isso acontecer.
Percebo que há escolas que se vejam muito atrapalhadas com o número de alunos e que esta seja vista como uma solução. Mas eu não a recomendaria enquanto profissional porque acredito que os níveis de atenção e de concentração vão baixar bastante. E se nós não tivermos alunos predispostos a aprender, depois também não vamos ter o currículo atingido.
Há mais fazer na escola do que aprender. Existe por exemplo essa recomendação para os alunos se cruzarem o menos possível, só que é essencial para o seu desenvolvimento que eles se cruzem, façam amizades. Mais uma vez, é preciso ponderar.
E aulas com 100 minutos são uma solução? Depende das idades?
Sim, depende muito das idades. Mas em qualquer idade 100 minutos são muitos minutos para o tempo de concentração dos alunos a menos que nesse tempo o professor tenha capacidade para fazer pequenas pausas para poderem descansar a mente. Literalmente, descansar a mente. E não estou a ver que tal seja muito possível tendo em conta que os alunos não podem circular, nem sair da mesma sala ou até da mesma cadeira.
Não creio que as aulas com esta duração sejam benéficas para os alunos, como também não creio que o seja o aumento dos horários com uns alunos a iniciarem aulas às oito horas e outros a terminarem às sete da tarde. Os adolescentes deveriam começar um bocadinho mais tarde e não é porque gostem de fazer noitadas, é mesmo porque o cérebro deles necessita, é neurológico. No caso dos alunos mais novos não é tão preocupante iniciar ligeiramente mais cedo, mas será muito preocupante terminar mais tarde.
Não me parece uma solução válida porque os alunos não vão conseguir manter os níveis de concentração e de energia necessários. Por uma questão de cansaço. Porque mesmo que iniciem as aulas às 13h39 muitos deles já estão levantados desde as sete horas para ir para centros de estudo ou ATL uma vez que os pais continuam a ter os seus horários de trabalho. E por isso já estarão extremamente cansados ao final do dia. Mais uma vez precisamos de pôr em cima dos pratos da balança o que queremos priorizar e o que para nós, comunidade escolar, é importante.
Então o que será possível fazer?
Não sei se alguém conseguirá apresentar a fórmula perfeita. Cada escola tem de ter capacidade para parar e reflectir sobre a sua própria realidade. Deixaria uma recomendação que aliviaria o trabalho das escolas: rever os conteúdos curriculares, que são extensíssimos. Mas a revisão curricular é uma decisão para entidades superiores. Mas as aprendizagens que ganhámos no último período do ano lectivo passado ajudam a que esteja optimista quanto a este novo ano.
Tem filhos em idade escolar?
Sim, dois gémeos com sete anos. Iniciaram o 1.º ano no ano passado. Estão muito ansiosos, com muitas saudades e com muita vontade de aprender. Enquanto encarregada de educação não estou preocupada como regresso, acho que a escola vai dar uma boa reposta. Mas o meu conselho enquanto encarregada de educação para outros encarregados de educação é que vão às escolas e vejam como se estão a organizar e que não deixem de estar em cima do que for sendo feito.
Faltam duas semanas para o início das aulas, as escolas estão preparadas? É essa a imagem que tem?
Quero acreditar que sim. Conheço diferentes realidades: escolas que estão à espera de mais orientações, mas também escolas em que as coisas estão minimamente organizadas. O resto será um desafio. Já temos alguma noção de como as coisas foram correndo com o regresso do secundário, a abertura dos jardins de infância, dos ATL, embora todos com poucos alunos. E felizmente na maioria dos casos correram bem. Eu sou uma optimista em relação ao próximo ano lectivo. É um desafio, mas tirámos muitas aprendizagens deste último período do ano lectivo que passou. O professor não é substituível.
Fonte: Público
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