“Nada alberga tanto de sonho
Como o Corpo que somos”
Sabemos que é para aí que os exercícios de previsão do futuro nos têm levado… para pensar que os nossos cérebros vão ser cada vez mais importantes, mais decisivos e maiores e que o nosso corpo se vai ao mesmo tempo atrofiando e tornando inútil. Nasce daqui a ficção de pessoas com cabeças enormes e com corpos raquíticos e muito pouco úteis. Na verdade, a grande utilidade destes corpos seria a de levar o cérebro de um lado para o outro… Não é inusitada esta ficção. A humanidade – sobretudo nas sociedades com maior incorporação de tecnologia – foi substituindo o trabalho dito “braçal” por máquinas cada vez mais sofisticadas na sua conceção e operação. Parecia que o corpo teria tendência para ser considerado descartável. E, se “a função faz o órgão”, seria linearmente compreensível que o órgão que mais é solicitado aumente de tamanho (o cérebro), e os órgãos menos solicitados se atrofiem.
Esta visão morfo funcional catastrofista tem o mérito de nos alertar para os novos significados e os novos entendimentos que emergiram sobre o corpo. O corpo continua, na verdade, a ser uma permanente inovação. Se estivermos atentos, veremos que não se passa um dia sem que se noticie uma descoberta, um novo entendimento, a compreensão de um novo fenómeno sobre o corpo. (Veja-se a este propósito o que se aprendeu sobre a relação entre o novo coronavírus e o nosso sistema imunológico). O corpo é certamente o manancial mais inesgotável de entendimentos antropológicos, sociológicos, médicos, educacionais, de expressão, de rendimento, de desempenho, etc. Esta visão de um corpo inesgotável de possibilidades, de complexidade e de dinâmica, contrasta fortemente com a visão de um corpo que se vai tornando mirrado, atrofiado e inútil.
À medida que mais vamos conhecendo sobre o corpo, mais entendemos que o corpo não fica menos importante à medida que se liberta de ser instrumento de trabalho. Pelo contrário, o corpo assume nas sociedades contemporâneas novos significados e novas relações.
Perante toda esta complexidade do corpo, torna-se impossível entender uma educação sem ele. Tolentino de Mendonça alerta-nos para isto mesmo ao escrever: "Não é possível excluir o corpo da escola, pois é através dele que damos significação ao mundo, maturando os diversos saberes e exercitando a responsabilidade pela inteira existência.”
Mas afinal, e substantivamente, porque é tão essencial o corpo na Educação? Diria que por três ordens de razões. Antes de mais, o corpo é a sede da experiência. Reputados estudiosos do desenvolvimento, como por exemplo Jean Piaget, não hesitam em fazer nascer a inteligência de uma experiência “sensório-motora” que é – numa formulação muito simples – o material sob o qual se vão estabelecer as primeiras causalidades e relacionamentos. E é sobre estas primeiras relações entre o que se recolheu na experiência sensorial e motora que vão ocorrer comportamentos que chamaríamos de “inteligentes”. Portanto, a vivência e a experiência corporal são essenciais para a aprendizagem.
O corpo é ainda essencial dada a sua profunda e indissociável relação com todo o comportamento humano. Nada seria mais redutor do que regressar àquela velha dicotomia escolástica, tão bem problematizada por Manual Sérgio, que colocava como diferentes e até mesmo opostos o corpo e a mente. Na verdade, não é possível deixar o cérebro pendurado com a roupa no balneário quando se vai fazer desporto. O nosso comportamento não é fruto exclusivo de uma coisa ou outra. Não é difícil encontrar vestígios desta dicotomia: ainda hoje designamos por Educação “Física” uma imprescindível área curricular que trata da experiência motora. Esta oposição entre “corpo e mente” é categoricamente desmentida por inúmeros estudos que mostram, por exemplo, que a prática de atividades motoras repercute positivamente no aproveitamento académico. Estes estudos derrubam a falsa e feita ideia que os “bons alunos” têm, por norma, pouca motivação (e “jeito”) para o desporto.
Existe ainda um outro aspeto essencial: o corpo como veículo e como sujeito de comunicação. Muito se tem falado – e bem – do afunilamento que a comunicação humana sofre quando se processa através de ferramentas digitais. Não é de estranhar: durante milhões de anos aprendemos a “ler” o corpo dos outros e a recolher informações da comunicação que vão muito para além da informação e “do que é preciso dizer”. A comunicação humana “face a face” é certamente a grande alavanca que usamos para o nosso desenvolvimento e para a educação. Quando esta comunicação fica diminuída na sua complexidade, quando fica “confinada” à conversa em frente ao ecrã, muito se perde em motivação, em incentivo, em compreensão e em feedback.
Por isso, a resposta à pergunta formulada parece óbvia: “Uma escola sem Corpo” pode talvez existir durante este período de tempo de “Educação de Emergência”, como muito bem designou Javier Aragay. Mas é um sucedâneo, uma pobre imitação. Será certamente uma louvável tentativa de remedeio (como aliás se tem visto com a criativa reinvenção que estão a levar a cabo os professores de Educação Física no ensino remoto), mas não é “the real thing”…
Estamos todos ansiosos por nos tocarmos, nos abraçarmos, por brincarmos juntos, por jogarmos, por correr, nadar, dançar. A nossa experiência corporal está quase a chumbar por faltas.
Estamos ansiosos por “pensar com o corpo”.
David Rodrigues
Fonte: Público
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