Estima-se que sejam mais de 600 mil as pessoas que em Portugal têm algum tipo de deficiência. Queixam-se da falta de apoios, sobretudo em casos graves. A família de Luís Jacinto é disso exemplo. Os pais deixaram trabalho e casa em Lisboa para cuidarem dele.
A vida de Berta e Amândio deu uma volta de 180 graus, estavam os filhos praticamente criados. Um acidente de carro atirou Luís, o mais velho, para uma cadeira de rodas. Tinha 22 anos, "era um rapaz perfeito". Viviam em Lisboa, aguentaram o trabalho até onde foi possível, mas regressaram à aldeia para lhe dar as melhores condições. Passaram 25 anos, o Luís tem 47, os pais acreditam que conseguiram que seja feliz. "A televisão é a grande companhia dele, mas no canal da música que o irmão descobriu. Adora música dos anos 1980." O Luís ouve a conversa e repete: "Música, música." Tenta cantar.
As rotinas de Berta Gomes são marcadas em função das necessidades do filho, o Luís Jacinto, que em 1991 ficou tetraplégico e com dificuldades mentais e em se expressar. Berta e o marido trabalhavam e ela andou num virote até conseguir a reforma antecipada. Viviam em Lisboa, para onde migraram de Bragança muito novos. Com o acidente do filho anteciparam o regresso às origens, à aldeia de Sambade. "Não costumava pensar no dia de amanhã. Hoje sim. O que vai ser do meu filho? Já não somos novos. Chego a pensar que era melhor ele ir antes de mim."
Histórias como a dos Jacinto não são novidade para Ana Sezudo, presidente da Associação Portuguesa de Deficientes (APD). "Há muitas famílias com as mesmas dificuldades e em que os pais estão aflitos. Conseguiram cuidar do filho até aqui e coloca-se o problema do que vai acontecer quando não tiverem possibilidades ou morrerem." Quais são os apoios a que pode recorrer uma família que, de repente, fica com uma pessoa com deficiência grave nos braços?
A dirigente critica a falta "de hospitais de reabilitação, tanto na parte motora como mental, tanto para a deficiência que é adquirida como para a que é de nascimento". A denúncia mais frequente é a falta de acompanhamento na deficiência e desde a idade mais precoce.
Existem pessoas fechadas em casa porque não conseguem dinheiro para comprar uma cadeira de rodas ou uma prótese. E se vão à rua os transportes públicos também não estão adaptados e os que estão não chegam para todos. E, por exemplo, não se pode tirar um passe para tornar as viagens mais baratas. Ana Sezudo sublinha que todas as dificuldades, em especial económicas, se agravam num caso de deficiência.
Correria entre trabalho e casa
Berta Gomes tem 72 anos e o marido, Amândio Jacinto, 75. Levantam o Luís da cama às 09.00, para lhe fazerem a higiene diária e dar o pequeno-almoço. O almoço é entre as 12.30 e as 13.00 e o lanche às 16.00. "Tem de ser àquela hora porque se eu não estiver começa logo ao rebusco. Vai ao frigorífico tirar o iogurte, às vezes encontro o iogurte no chão." O jantar é às 19.00/19.30 e este termina com um café. "Gosta muito do cafezinho de cafeteira." Agora, que os dias começam a ser maiores e mais quentes, dá para ir ao café da aldeia à tarde, o que fazem frequentemente.
Luís Jacinto não come sozinho, não tem dentes, os alimentos têm de ser desfeitos. Mas "tem sido um bom doente nesse aspeto. Só quer comer de garfo, fruta cortada, por exemplo. Já não consegue comer a sopa, vai tudo para o chão", diz a mãe. Quando ela tira a toalha da mesa de jantar, Luís percebe que há jogo de cartas. Mete-lhe o baralho e o comando da televisão à frente para se entreter enquanto arruma a cozinha.
Berta tinha 21 anos quando casou, o marido, 24. Deixaram Sambade, no concelho de Alfândega da Fé, para trabalhar em Lisboa. Ela como auxiliar de ação educativa numa escola, ele na Sorefame. Tiveram dois filhos, o Luís e o Miguel, este oito anos mais novo. Iam à terra nas férias e em quadras especiais.
O mais velho, o Luís, tirou a carta aos 21, o que Berta aproveitou para também aprender a conduzir, tinha 46 anos. Um ano depois, quando se deslocaram à aldeia para passar a Páscoa, o rapaz foi a Alfândega da Fé e despistou-se com o carro. Internado em estado grave, passou por vários hospitais até ficar numa clínica, onde esteve dois anos. E sempre com a visita dos pais.
"Meti baixa, mas por pouco tempo. Levantava-me cedo para trabalhar na escola, às duas ia para o pé dele na clínica e ficava lá toda a tarde. O médico dizia-me que eu era a grande responsável pela recuperação do meu filho. Levava-lhe a sopinha , fazia tudo", conta Berta. "Era um rapaz perfeito e tinha um bom emprego. Esteve muito tempo internado, em semicoma, a comer por sonda. Ficou sem falar e agarrado a uma cama aos 22 anos."
Quase três anos depois do acidente, trouxeram-lhe o Luís para casa. "Tratava dele, dava-lhe o pequeno-almoço e deixava-o na cama. Ia trabalhar na escola, que era perto de casa, e vinha a casa ao almoço. O pai também era incansável, nunca deixou o trabalho." Acabaram por se dedicar mais ao filho mais velho do que ao mais novo. "O irmão ficou muito traumatizado, eram muito amigos, ainda hoje."
Tentaram e conseguiram meter o rapaz num estabelecimento especializado, "um colégio no Restelo", mas as coisas não melhoraram. "E ainda a pagar 50 contos [250 euros], que de graça nunca tive nada", protesta Berta Gomes, acrescentando: "Andou lá oito dias. Ele não queria, era sempre difícil deixá-lo. Nós é que o levávamos e trazíamos, era muito complicado. Morávamos na Amadora e o meu marido ia trabalhar às 08.00. Às 07.30 ele metia o filho no carro, já lavado e preparado. Eu dava-lhe ali o pequeno-almoço, levava-o ao Restelo e ia trabalhar. Voltava para o buscar às quatro da tarde e trazia-o para o trabalho. Ele ficava no carro enquanto eu limpava as salas, à espera de que o pai chegasse para o levar."
Foi há quase 30 anos, registaram-se melhorias a nível dos cuidados de saúde, mas não nos sistemas de apoio, diz Ana Sezudo. "Em Portugal, a resposta para estas situações é muito fraca e não fornece os meios necessários para que uma pessoa com deficiência volte a ser reenquadrada. E o acompanhamento que se tem numa situação destas, ou a falta dele, pode agravar a dependência. A nível das famílias, não há apoio financeiro. A pessoa com deficiência recebe uma pensão de invalidez na ordem dos 300 euros mensais. Como é que alguém dependente de terceiros sobrevive com esse dinheiro? E depois, quando os progenitores morrem, a única solução é a institucionalização."
A APD defende mais apoios às famílias em vez de se continuar a apostar na institucionalização, que considera ser uma política errada. "Acaba por custar mais dinheiro, cerca de mil euros por mês. Além de que os lares estão vocacionados para receber idosos e deficientes motores."
Acrescenta que ainda não sentiu mudanças com o atual governo, que criou a Secretaria de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, liderada por Ana Sofia Antunes, que presidia à Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal. A única novidade é a realização de um inquérito sobre a deficiência no país, cuja data de início não está ainda marcada. A última contagem foi feita pelo Instituto Nacional de Estatística, em 2001. Indica que 6,1% da população portuguesa tem uma deficiência (636 mil pessoas). E 73 844 com uma incapacidade superior a 80%.
Reforma para tratar do filho
Berta e Armando desistiram do colégio do filho. Mantiveram-se as correrias para conciliar as horas dos refeições do rapaz com o trabalho, a sorte é que a escola onde Berta trabalhava era perto de casa. Muitas vezes o Miguel (o irmão, agora com 39 anos) ficava a tomar conta dele. Ela aguentou uma meia dúzia de anos neste ritmo, até que teve a oportunidade de obter a reforma antecipada sem penalizações, desde que pagasse os descontos que faltavam à Segurança Social. "Ainda paguei nove anos." Quando o marido também se reformou, rumaram até ao concelho de Alfândega da Fé, em Bragança.
A vivenda em Sambade teve de ser adaptada à nova realidade, a habitação estava concentrada no 1.º andar. Fizeram um quarto para o Luís e uma cozinha/sala no rés-do-chão, piso onde, agora, também os pais dormem. É o Miguel que reside no primeiro andar com a mulher e a filha, o que é mais uma ajuda no acompanhamento do Luís. "A sobrinha, a Cátia, tem 3 anos e brinca muito com tio", diz a avó.
Luís Jacinto teve de fazer uma traqueotomia, um orifício aberto na frente do pescoço às pessoas que necessitam de ventilação mecânica prolongada, o que dificultou mais a comunicação. Só os mais próximos percebem o que diz. Dão passeios, não faltam ao arraial das festas de Sambade. Luís gosta de estar no terraço, da horta e dos animais domésticos. O resto do tempo passa-o a ouvir música.
"É tudo muito trabalhoso, mas é diferente ele estar em casa do que num lar, está no ambiente dele. Vê televisão e gosta de ouvir música alto, mas só o faz quando eu não estou em casa. Joga às cartas, agora está muito batoteiro."
O casal fez todas as obras com os próprios meios. "Nunca tivemos direito a nada", queixa-se Berta. "Ainda fui à Segurança Social pedir umas fraldas para ele, também precisava de um colchão antiescaras, disseram que não tínhamos direito devido à nossa reforma. Nós damos-lhe tudo o que podemos. O que é que íamos fazer? Ainda há pouco disse ao Miguel para ele ver onde arranjar um computador com as teclas grandes, ele devia gostar. E a nossa reforma lá vai dando. Temos batatas, hortaliça, azeite, que o meu marido gosta de trabalhar no campo", explica Berta Gomes.
Tentam poupar a pensão de invalidez do filho, cerca de 300 euros. "Se tiver de ir para algum lado, se nós faltarmos, o irmão não pode estar com essas coisas e ninguém vai tratá-lo de graça."
Fonte: DN
Sem comentários:
Enviar um comentário