Criança entretida com o telemóvel “inteligente” e pais à mesa do restaurante a tentarem ter um pouco de sossego. O cenário cada vez mais habitual durante as férias. Smartphones e tablets vão parar às mãos dos miúdos muito antes de aprenderem a falar. Hoje, parece quase absurda a ideia de manter as crianças afastadas destes dispositivos eletrónicos.
Mas de 1999 até 2015 foi essa a posição defendida pela reputada Academia Americana de Pediatria (AAP). Crianças até aos dois anos não deveriam ver televisão. E os DVD portáteis no carro, smartphones e tablets causavam distração, “substituíam as brincadeiras importantes para as relações sociais, prejudicavam o desenvolvimento motor e a fala”.
Quatro anos mais tarde, a AAP atualizava esta visão, considerada “alarmista” por muitos estudiosos da educação para os media, uma área que estuda a relação das crianças com as novas tecnologias e coloca a tónica na “mediação parental” e na capacitação das crianças, em detrimento da proibição.
As novas recomendações quanto à utilização dos dispositivos eletrónicos põem em evidência as mudanças sociais que tornavam inevitável a exposição das crianças com menos de dois anos à televisão, tablets, smartphones. Por isso, os especialistas da AAP reconhecem agora que cabe aos pais supervisionarem o tempo que os filhos ocupam com estes aparelhos. Mas isto não chega.
Os pais devem ainda envolver-se nas atividades tecnológicas dos filhos. Quando são ainda bebés esta supervisão é essencial, diz a AAP, já que os pais devem zelar para que a sua aprendizagem seja feita através da comunicação verbal e não através de vídeos. Além destas medidas, os pais devem também prestar atenção à qualidade dos conteúdos e das plataformas digitais. Mas acima de tudo, dar e, preferência às atividades familiares sem o uso da tecnologia.
Se até à entrada na escola a utilização dos dispositivos eletrónicos assume maioritariamente a função de entretenimento, depois, computadores, portáteis e tablets surgem quase como a “tábua de salvação” para o futuro. Sem as competências digitais que vão ganhando cada vez maior importância, como irão os pequenos ter grandes empregos?
Entre o uso e o abuso, como deve ser a relação das crianças com as tecnologias? Eduardo Sá, psicólogo clínico e autor de vários livros dedicados à infância, responde à questão que preocupa pais, professores e educadores. “Ainda sou do tempo em que os pais viam com preocupação o modo como as crianças se relacionavam com os desenhos animados que diziam ser violentos.”
Em várias ocasiões a violência dos desenhos animados foi apontada como culpada pelos comportamentos violentos das crianças. Os pais eram os primeiros a apontar o dedo. “Sempre achei isso uma delícia porque, que me lembre, a Heidi não era violenta, mas não era propriamente um desenho animado simpático. Alguns exemplos da Disney não eram da maior solidariedade entre pessoas.”
Por isso, atendendo às preocupações dos pais, recorda Eduardo Sá: “Não me cansava de chamar a atenção para um pormenor: é que os desenhos animados dão-nos histórias e as crianças precisam de histórias para aprender a pensar.”
Apesar da apreensão com a alegada violência dos desenhos animados, a prática das famílias fazia, e continua a fazer, do grande ecrã um amigo sempre presente. Na sala, na cozinha e até no quarto dos miúdos. “Aquilo que me preocupava era, em primeiro lugar, o modo como ao sábado e ao domingo de manhã, ou mal as crianças chegavam a casa da escola durante a semana, os pais eram os primeiros a entregar as crianças aos desenhos animados, que eram uma espécie de babysitter que eles tinham durante horas e horas.”
Hoje, as babysitters são outras. “Tenho medo que com as novas tecnologias a determinada altura estejamos a chegar ao mesmo”, alerta Eduardo Sá. “Os pais entregam o tablet nas mãos dos filhos naquele registo do entretém-te, não faças barulho, não incomodes e, às vezes, as crianças estão horas entregues a estes dispositivos. Para que depois, a seguir, os pais digam que os tablets são uma maldição que faz mal à saúde das crianças.”
No seu registo habitual, Eduardo Sá desdramatiza posições mais extremistas. As tecnologias não são foco constante de ameaça, nem de doenças. “Os tablets, os jogos de computador fazem lindamente à saúde das crianças, mas evidentemente são os pais que têm de definir conta, peso e medida, para que elas façam uma utilização de tudo isto.”
Nem poderia ser de outra maneira. Os tempos são outros. Proibir não é mais uma solução. E ninguém pode negar o potencial das tecnologias no ensino e na aprendizagem. “O desafio hoje é muito maior. As crianças têm uma enciclopédia nas mãos absolutamente fascinante, maior do que qualquer biblioteca que nós algum dia já tivemos.”
Mas quando os adultos veem no uso do tablet um meio de preparar as crianças para o mercado de trabalho, algo está errado. “Por favor, deixem as crianças brincar com os tablets, porque são uma fonte de sabedoria animada, audiovisual que lhes puxa pela cabeça, e não para terem emprego no futuro.”
O fascínio quanto ao que as tecnologias podem fazer pelo desenvolvimento crianças não deve fazer os pais ignorar outros aspetos importantes na vida dos mais novos. “Além de terem acesso a estas transformações todas fascinantes, as crianças continuam a precisar de correr”, acrescenta o psicólogo. “É bom que os pais percebam que os meninos além de usarem a ponta dos dedos, têm de mexer na terra e sujarem-se como os pais fizeram.”
Brincar continua a ser a atividade principal das crianças. Ainda que as brincadeiras mais extrovertidas pareçam ter entrado quase em desuso. “Muitos meninos chegam ao jardim de infância, por estranho que possa parecer, e quando vão a correr não sabem evitar o outro quando ele vai a chocar e, portanto, não sabem brincar com o corpo.”
E apesar dos tempos serem outros, há aspetos humanos que nunca mudam. “As crianças continuam a ser iguais ao que eram e terem mais fontes de conhecimento não significa que não precisem de brincar com o corpo”, insiste Eduardo Sá. E quanto às tecnologias? “Quando temos em conta a importância dos pais, dos avós e da família, a importância do brincar, de brincar com o corpo e damos às crianças as tecnologias, esta mistura é absolutamente explosiva, no sentido mais fantástico do termo”, garante o psicólogo. “Portanto, é altura de falar com serenidade. Porque aquilo que me preocupa não são os tablets, nem as tecnologias, é a falta de regras que os pais colocam nisto tudo”, conclui.
Fonte: Educare
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