quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O deficiente que reclama o direito de fazer amor

De Estrasburgo, Marcel Nuss aparece no écrã do computador, via Skype, com um sorriso luminoso. Deficiente profundo devido a uma amiotrofia espinal, doença congénita e hereditária que o paralisou aos 10 meses, lançou um livro, Je veux faire l’amour (Quero fazer amor, Ed. Autrement), exigindo o direito a “assistência sexual”, para si e outros na sua condição. Com isso, lançou um debate em França sobre a legalização da “prostituição voluntária”.

“Vou contar-lhe apenas uma pequena parte da minha vida, porque ainda este ano vou publicar a história dos meus 57 anos, uma biografia com o título ainda provisório de A contra-corrente”, diz Nuss (...), numa conversa que durou duas horas. Não é fácil falar e fazer-se entender depois de, aos 19 anos, ter sido submetido a uma traqueotomia e ter de respirar por um ventilador. 

O diálogo começa assim: “Vê-me no meu escritório, mas não pense que estou confinado a esta cama regulável que apenas me facilita a conversação; aqui, movimento-me numa cadeira de rodas, embora sempre com a ajuda dos meus quatro empregados. Só me deito em casa, para descansar bem, porque trabalho cerca de dez horas por dia.” E o que faz ele? “Escrevo num computador, graças a um microfone de reconhecimento de voz; dou palestras, percorro uma média de 25.000 quilómetros por ano por vários países, num carro adaptado e conduzido por um motorista. No próximo ano, estarei em Bolonha, Itália.”

Um lobo por dentro
Quando o som perde qualidade e ele se queixa, uma mão feminina aproxima-se, silenciosamente, para ajustar o auricular. Mais tarde, enquanto ele explica o simbolismo da tatuagem no tronco, que o lençol não tapa por completo, a mesma mão interrompe-o para lhe dar uma chávena de chá e um comprimido. “Mandei tatuar um lobo, porque é um animal selvagem e solitário como eu, mas eu sou apenas no interior; por fora sou muito aberto”.

Nascido em Geispolsheim, nos arredores de Estrasburgo, em 1955, o pai carpinteiro e a mãe dona de casa, com um irmão e duas irmãs com os quais frequentava a mesma escola, Nuss conta que foi hospitalizado, pela primeira vez, tinha um ano de idade. “Era um lugar sem condições para a minha situação”, critica. O estado de saúde agravou-se aos 14, e os estudos foram interrompidos. “Tinha eu 19 anos, depois de uma paragem respiratória, fiquei oito dias em coma e obrigado a permanecer cinco anos no serviço de reanimação”, detalha. “Foi aqui, em 1978, que conheci Gabi, uma enfermeira com quem me casei”

“Seduzimo-nos mutuamente, e Gab deixou o hospital para se dedicar exclusivamente a mim – sempre sozinha”, reconhece Nuss, cabeça rapada e o rosto com barba emoldurado por uns óculos de massa. “Juntos, aprendemos formas alternativas de fazer amor. Tivemos dois filhos: um rapaz, Mathieu, e uma rapariga, Elodie. Felizmente, em nenhum deles se manifesta a minha doença, mas são portadores dela. Se um dia quiserem dar-me netos, os seus parceiros terão de fazer testes para garantir que não correm riscos.”

“Em 2002”, prossegue Nuss, “eu e Gab decidimos divorciar-nos. Ela estava esgotada, e a nossa relação também. Desde então, não mais nos contactámos. Voltei a ter uma companheira durante sete anos e outros romances, sobretudo com escort girls [acompanhantes] “Não sou como os tetraplégicos”, sublinha. “Posso não mexer nada, mas sinto tudo, incluindo desejo. Comigo, a mulher é a parte ativa fisicamente, e eu sou ativo pela palavra. E ela não fica indiferente. Ninguém pode negar a um deficiente o direito a ter prazer sexual. Por isso, ajudei a fundar a Coordination Handicap et Autonomie, em 2002, e o Collectif Handicaps et Sexualités (CHS), em 2007.”

Quando a deficiência faz o homem
Após o divórcio, Nuss recebia um subsídio de 900 euros por mês, que ele gastava em três horas de assistência por dia. “Um dia fui ao encontro de Ségolène Royal [na altura, ministra delegada para a Família e os Deficientes, no Governo socialista de Lionel Jospin] para que ela visse, com os seus próprios olhos, a situação de dependência total em que me encontrava. Consegui mudar a lei, o que surpreendeu muita gente. Em Abril de 2002, comecei a receber quase 10 mil euros mensais em ajudas do Estado – e é com esse dinheiro e o que cobro nas minhas conferências, aproximadamente 9500 euros brutos por ano, que pago 300 a 400 euros por mês a cada um dos meus empregados, que têm famílias para sustentar.”

A batalha de Marcel Nuss tem deparado com críticas dos que veem nos seus esforços uma campanha para legalizar a prostituição. Ele esclarece: “É preciso reconhecer que existe uma prostituição especializada e voluntária – em França, uns 20% de prostitutos, homens e mulheres, são voluntários e merecem ser respeitados. É uma escolha deles e isso não me perturba, porque não os confundo com a prostituição mafiosa que, essa sim, é um escândalo.”

Como reagem os filhos de Marcel a esta sua militância? “O meu filho, professor de 30 anos, e a minha filha, musicóloga de 28, nunca deixaram de me apoiar”, assegura Nuss. “Eles entendem que, para mim, a doença não é uma fatalidade. É parte de mim, mas não é toda a minha vida. A minha deficiência tornou-me mais forte. Em geral, a deficiência destrói; a mim, ela construiu-me. Não me impede de viver, de trabalhar, de ser feliz.”

Além da autobiografia em fase de conclusão, Marcel continua, desde os 20 anos, a escrever poemas, “a maioria eróticos”, revela, citando como fontes de inspiração Arthur Rimbaud, Guillaume Apolinaire, Jacques Prévert e alguma poesia japonesa. “Não sou eu que escrevo, são os poemas que me escrevem. De manhã, por vezes, surgem bruscamente.” (...)

A finalizar a entrevista, Marcel Nuss faz questão de falar de Jilly, a atual namorada, de 27 anos. “Ela é assistente sexual. Eu já era conhecido e ela ficou surpreendida por a contactar. Apaixonámo-nos por Skype. (Risos) Há quem fique chocado com a nossa diferença de idades, mas esse choque só existe por eu ser deficiente, porque, nos meios intelectuais, há muitos homens da minha idade que se envolvem com mulheres mais jovens. Quem nos conhece acha tudo normal. Gostava que a nossa sociedade fosse mais tolerante e não fosse tão intrusiva.”

Jilly, que aparece junto de Nuss nas fotos que ele partilha no Facebook, muitas vezes alertando os amigos virtuais para os artigos do seu blogue (http://nussmarcel.fr/), tem planos para se mudar para casa dele, em fevereiro. Irá abandonar a profissão? “A decisão será dela e eu aceitarei o que ela decidir. Se quiser continuar, não vejo problema. Na nossa cultura o amor é sexo. Para mim, amor não é sexo, mas o sexo faz parte do amor. Ou amamos ou não. Temos de respeitar a liberdade do outro.”

Por Margarida Lopes Santos

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