Todas as mães alimentam medos inconfessáveis. As mães atípicas, que cuidam de crianças tocadas pela diferença, vêem estes receios a atravessar o pensamento vezes sem conta porque sabem que os filhos estão mais vulneráveis. Temem bullying e outras situações que possam colocá-los numa situação de desconforto, dor ou risco de vida. No meu caso, que tenho um filho com dificuldades de comunicação, a situação que mais me aterroriza é a hipótese de o menino se perder e não ser capaz de informar onde mora ou qual é o telemóvel dos pais. Ou melhor, esta era a hipótese que mais me aterrorizava. Não é mais.
Na semana passada, foi noticiado na imprensa brasileira o caso de uma mãe que foi encontrada morta no próprio quarto. Chamava-se Ana Paula, tinha 39 anos e foi provavelmente vítima de um enfarto fulminante do miocárdio. O filho, de seis anos, é autista. Os dois moravam juntos numa casa em Minas Gerais, no Brasil. O corpo só foi encontrado vários dias após o óbito, quando o irmão de Ana Paula, estranhando a falta de notícias, resolveu arrombar o portão. O menino não conseguiu pedir ajuda, uma vez que tem dificuldades de comunicação. Sobreviveu recorrendo a bolachas e bebidas que estavam sobre a mesa da cozinha e dentro do frigorífico, refere o jornal Estado de Minas Gerais. O laudo do Instituto Médico Legal sugere que a criança terá ficado 12 dias sozinha, ou até mais. Doze dias. Sem cuidados, apoio psicológico, conforto humano. Doze dias. Tanta solidão.
O caso terrível de Ana Paula condensa não só o pior dos medos de uma mãe, mas também uma gradual perda do sentido de comunidade. De nós todos, em maior ou menor escala. Desconheço se a mãe contava com uma rede coesa de amigos ou familiares, se tinha uma situação económica frágil ou se a criança estava numa escola acolhedora. Tudo o que sei sobre esta família é o que escrevi no parágrafo anterior. Mas depreendo que, durante vários dias consecutivos, nenhuma pessoa que integrava o círculo social de Ana Paula tomou a iniciativa de ir até lá ver como a família estava. Mesmo sabendo que se tratava de uma família monoparental e com uma criança com deficiência. Talvez tenham enviado um áudio via WhatsApp, uma mensagem pelo Facebook ou tentado ligar até o telemóvel ficar sem bateria. Mas foram necessários 12 dias até que alguém se levantasse da cadeira e fosse lá tocar a campainha. Doze dias. Se o tio não tivesse tomado a iniciativa, o menino talvez ainda estivesse trancado no imóvel com o cadáver da mãe. Devemos dizer que, apesar da atitude tardia, o tio salvou o sobrinho.
Nunca estivemos tão contactáveis como hoje. Muitos de nós enviam mensagens antes de dormir e logo ao acordar. Ou seja, estamos tão sedentos de interacções humanas que falamos uns com os outros deitados, a partir do espaço mais íntimo que temos em casa. Antes, a cama era o local onde conversávamos com quem coabitamos – o nosso companheiro, os nossos filhos e talvez os nossos animais de estimação. Hoje, sob os lençóis, damos os parabéns aos aniversariantes do dia, dizemos bom dia aos membros dos grupos dos quais fazemos parte, partilhamos notícias e fotografias, pagamos contas e despachamos e-mails de trabalho. As ferramentas que nos permitiram estas mudanças de comportamento são úteis e oferecem possibilidades interessantes de contacto, diálogo e partilha. Mas não fabricam necessariamente um sentido de comunidade.
Tenho a impressão de que estamos a construir redes sociais cada vez mais vastas e homogéneas e, simultaneamente, a fragilizar os laços que mantêm as comunidades coesas. Quanta energia sobrará para nos importarmos presencialmente uns com os outros, sobretudo com os mais vulneráveis? Quantas chamadas não respondidas são precisas para tocarmos na campainha de um colega de trabalho? E mensagens enviadas e não lidas, sem os dois vistos azuis? Quantas? Quantos dias podemos passar sem ver um vizinho idoso até decidirmos premir o botão do intercomunicador? Se eu ou o leitor morrermos de repente, e sozinhos, quantos dias serão necessários para baterem à nossa porta?
Andreia Azevedo Soares
Fonte: Público
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