Maria Mendes, coordenadora do projecto EduCig – Desempenhos escolares entre os Ciganos, não ficou surpreendida com o relatório da Inspecção-Geral de Educação e Ciência que detectou concentração de crianças ciganas em turmas. “A existência de turmas de nível de aprendizagem não é tão rara em Portugal.” O cruzamento disso com a pertença étnico-racial tão-pouco.
Atendendo à Estratégia Nacional de Integração das Comunidades Ciganas, no ano lectivo 2020/2021 a Inspecção-Geral analisou 15 escolas frequentadas por mais de 50 alunos ciganos. Verificou que quase metade (46,7%) não definiu critérios de integração dos estudantes ciganos nas turmas dos ensinos básico e secundário. E que mais de metade (53,3%) não respeitou o critério de heterogeneidade dos alunos nas turmas dos 2.º e 3.º ciclos, considerando a pertença étnica: encontraram diferenças entre turmas, do mesmo ano, iguais ou superiores a 25% entre o valor máximo e o valor mínimo da percentagem de alunos ciganos.
Os directores das escolas apresentaram três razões para a concentração de alunos ciganos. Primeiro, a condição de turma única no ano de escolaridade, no estabelecimento de ensino. Segundo, a língua estrangeira II e a disciplina de Complemento à Educação Artística escolhidas pelos alunos. Terceiro, a opção da escola pela continuidade pedagógica das turmas entre os ciclos de ensino.
Esta investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa conhece bem essa realidade por força dos trabalhos que tem desenvolvido. “A condição de turma única no ano de escolaridade, no estabelecimento de ensino, pode acontecer”, reconhece, aludindo à existência de “escolas localizadas em territórios em que há uma concentração expressiva de pessoas ciganas”. “São territórios segregados e a própria escola acaba por concentrar uma população homogénea em termos sociais”, aponta. “São crianças que vivem em espaços residencialmente segregados e dentro da própria escola são segregadas em termos sociais e por vezes a nível étnico-racial.”
Maria Mendes admite que a opção de língua estrangeira II e a disciplina de Complemento à Educação Artística também possa provocar acumulação. “Parece-me mais difícil de entender o terceiro argumento: a opção da escola pela continuidade pedagógica das turmas entre os ciclos de ensino.” Na opinião desta professora do Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, este terceiro argumento é “pouco defensável”. “Não me parece que este critério seja prioritário em termos pedagógicos e não faz sentido que prevaleça sobre o critério heterogeneidade”, diz. “Este argumento pode ocultar outros intuitos, nomeadamente a constituição de turmas de nível, que me parece ser o caso aqui em análise.”
Está convencida de que que os professores fazem turmas com o mesmo nível de aprendizagem por razões de ordem prática. “Acham que concentrar os alunos mais fracos é positivo, mas acabam por prejudicá-los”, concede. “É importante haver oportunidade de contacto com quem tem outras experiências de vida, outros níveis de aprendizagem, outras formas de estar. Se as crianças não têm esta oportunidade de contacto, ficam ainda mais marginalizadas. A escola segrega-as, quando deve ser um espaço de alguma horizontalidade funcional, no qual elas têm possibilidade de se relacionar com outras.”
Numa das escolas, os elementos recolhidos fundamentaram uma investigação da Inspecção-Geral no sentido de perceber se estava ou não a ser cumprido o regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate à discriminação, em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem. Tais esforços resultaram num despacho de arquivamento com recomendações ao director.
“É complicado obter evidências claras”, sublinha Manuela Mendes. Aquele caso nem terá chegado à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial. “No site desta comissão, há duas condenações em 2018 relativas a situações similares. As coimas aplicadas são baixas, o que eventualmente não constitui um factor de dissuasão.”
“As escolas nunca assumem que a constituição das turmas possa ter subjacentes critérios discriminatórios”, tinha já comentado a coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, Maria José Casa-Nova. “Sabemos que algumas vezes ocorre porque é mais fácil ter turmas ‘normais’, sem alunos que desafiam práticas pedagógicas que atendem maioritariamente ao perfil de aluno/a pertencente ao universo cultural da maioria.” Esta professora da Universidade do Minho também não tem dúvidas: “Por razões pedagógicas, sociais, interculturais e de construção de igualdade, as turmas deveriam ser heterogéneas.”
Fonte: Público
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