terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

"O que poderá explicar a reação deste jovem é o sofrimento, não a Síndrome de Asperger"

João, o jovem de 18 anos que é estudante de engenharia informática, que vive em Lisboa desde o início do ano letivo, que nasceu numa pequena aldeia da Batalha, e que a Policia Judiciária deteve na quinta-feira desta semana, por suspeita de ter um plano de ataque contra o Bloco B da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que frequentava, arrisca-se a não mais deixar de estar a associado a um "crime de terrorismo" ou até só a uma condição neuropsicológica, Síndrome de Asperger. Esta última associação, porque, segundo se sabe, a mãe terá referido em tribunal que ter sido uma patologia que lhe foi diagnosticada na infância.

Mas três dias passados desde a detenção do jovem, depois de se conhecerem alguns detalhes da investigação - como a Polícia Judiciária ter sido alertada pelo FBI para o facto de um jovem português integrar grupos da Darkweb, que se dedicam ao consumo de imagens de violência extrema, como massacres em escolas - há questões que começam a surgir sobre a dimensão que o caso tomou e o que poderá explicar a atitude do jovem.

Do lado da justiça, a ex-procuradora-geral da República, Cândida de Almeida, já disse "não ser normal nem aconselhável que se divulguem tentativas de ataques evitadas", e que tal divulgação até contraria o protocolo ou os procedimentos normais neste tipo de casos, podendo fomentar o medo na sociedade e levar a um efeito de mimetização.

Do lado da saúde, a psiquiatra Ana Vasconcelos, que tratou e acompanhou o primeiro jovem que em Portugal avançou com um atentado contra uma escola, que ficou conhecido como o caso de Massamá, nos arredores de Lisboa, diz mesmo que não são os rótulos associados à Síndrome de Asperger ou a divulgação do caso que vão ajudar a explicar os causas do sofrimento que este jovem pode ter tido ao longo da vida e as suas atitudes.

Para Ana Vasconcelos, este caso exige que se procure com rigor "as causas do sofrimento do jovem", pedindo: "Não lhe atribuam rótulos". Até porque, explica, a "Síndrome de Asperger já não é uma entidade patológica, saiu há muito desta classificação". Por isso, "não pode ser usada como diagnóstico ou para explicar um caso tão complexo como este".

Neste momento, referiu (...) a pedopsiquiatra, "com tanta verdade e evidência científica que existe para compreendermos casos como este, não podemos começar a julgar de uma forma subjetiva".

Na opinião da médica, "o importante agora é estudar as causas do sofrimento, porque serão estas que nos irão dar pistas compreensivas sobre a reação do jovem e não a Síndrome de Asperger", reforçando mesmo: "Gostava de saber o que é que as pessoas entendem ou sabem sobre Síndrome de Asperger? Porque se fala nela, quando a evidência científica já deixou de falar".

A psiquiatra explica porquê: "O que acontece muitas vezes nestas situações é que estamos perante patologias que, curiosamente, têm a mesma expressão psicológica ou psicopatológica, mas com fundamentos de sofrimento diferentes. Uns casos entram na patologia da bipolaridade e outros no espetro do autismo. O que temos de analisar é se este jovem terá sintomas de bipolaridade juvenil ou de espetro de autismo".

É por isto que defende que o caso que o país ficou a conhecer através da comunicação social esta semana, e devido à dimensão que adquiriu, "terá de ser bem clarificado em vários aspetos, nomeadamente na forma como foi tratado do ponto de vista policial e judicial, como na forma como foi dada a informação".

"São patologias de grande sofrimento psicológico"

(...) Ana Vasconcelos usa até como exemplo o caso do jovem que, em 2013, ficou associado ao ataque à escola de Massamá, e que tratou. "O caso que segui tem contornos idênticos ao que já se sabe deste caso. Na altura foi logo relatado que o jovem tinha Síndrome de Asperger quando tinha era sintomatologia de bipolaridade. Acabou por ser tratado e ficou bem".

Mas o que são patologias de bipolaridade? "São patologias de um grande sofrimento psicológico em que as pessoas têm muita dificuldade na intersubjetividade, sentindo-se excluídos e ostracizados pelos outros", explica. "A certa altura, o cérebro destas pessoas encontra uma solução mágica para resolver um sofrimento e podem passar de uma situação de grande estado depressivo para um estado maníaco". E, geralmente, estas situações estão mais dentro da bipolaridade, que algumas pessoas classificam como patologias da personalidade limite, porque vivem uma realidade dissociada da realidade".

Até agora, sabe-se que João foi detido no seu quarto, no apartamento que partilha com outros jovens, e onde tinha armas brancas e botijas de gás, que não escondeu a surpresa quando deparou com a polícia e que após ter sido ouvido em tribunal, no Campus da Justiça, por um juiz, foi indiciado pelo crime de terrorismo, ficando com a medida de coação mais grave, prisão preventiva. Sabe-se ainda que João, e como o DN noticiou, usava na Darkweb o nickname de "Psychotic Nerd", que tinha fascínio por tiroteios em massa contra alvos indiscriminados e tiroteios em escolas, e que o plano que teria elaborado era para ser executado em cinco minutos.

Para Ana Vasconcelos, isto pode dizer muito pouco das suas motivações e do seu sofrimento, "o caso tem de ser estudado de forma extremamente prudente, porque a sua atitude tanto pode ser uma situação reativa ao sofrimento, entrando numa atividade de bipolaridade, em que as pessoas têm uma fuga para pensamentos maníacos de controlo do mundo, do poder, o que é muito especifico também da adolescência, ou numa estrutura do espetro autista, com atividade delirante".

"Há o medo coletivo de que a qualquer momento algo vai rebentar"

Em relação à dimensão que o caso tomou a psiquiatra diz mesmo ser uma situação que pode ser explicada com a pandemia. "A pandemia trouxe o pânico das multidões. Podemos ver isso neste caso como nos conflitos nos jogos de futebol ou até nas campanhas eleitorais. Estamos num momento em que há muita tensão emocional, e muito contida pelos confinamentos. As pessoas estão sem objetivos e, portanto, agarram-se a catástrofes que, por vezes, racionalmente, não têm a dimensão que lhe estão a dar. É um escape para um sofrimento coletivo. É o medo coletivo de que a qualquer momento algo vai rebentar".

Sobre a divulgação de um caso que não chegou a acontecer pela própria autoridade policial, Ana Vasconcelos comenta (...) ter dado apoio a investigações, nomeadamente na Alemanha, de situações graves, em que, pela urgência de as detetar e resolver, as autoridades não tinham noção do impacto da informação que era divulgada.

Portanto, "o que me dá ideia é que, por vezes, se esquece o protocolo de como determinada informação deve ser passada para os media e para a população. A própria PJ poderia não ter a noção do impacto das notícias", conclui.

João, de 18 anos, foi ouvido em tribunal na manhã de sexta-feira. Na manhã de sábado, sabia-se que já tinha sido transferido do Estabelecimento Prisional de Lisboa para o Hospital Prisional João de Deus, em Caxias, para ser observado e tratado.

Fonte: DN por indicação de Livresco

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