terça-feira, 26 de maio de 2015

"Cidadãos de Segunda"

Repórter TVI: Crianças com problemas psicológicos têm subsídios indeferidos pela Segurança Social em juntas médicas onde se encontram clínicos de outras áreas (com vídeo)


Nos últimos tempos, todos os meses são indeferidos dezenas de pedidos de subsídios a crianças e jovens com problemas psicológicos. Subsídios que estão previstos na lei e que servem para pagar terapias como psicologia, psicomotricidade, terapia da fala ou terapia ocupacional. 

Mais grave: há crianças com problemas psicológicos que estão a ser convocadas pela Segurança Social para se apresentarem a juntas médicas compostas por estomatologistas, médicos de clínica geral ou especialistas em medicina do trabalho, ou seja, de áreas completamente diferentes. 

Sem grandes justificações, o Estado está a negar ou a suspender o financiamento das terapias e por isso, centenas de crianças estão a abandonar os tratamentos. As mais pobres, com certeza. As famílias não conseguem suportar os custos das consultas. Revoltadas, acusam o Estado de tratar os filhos como cidadãos de segunda! 

Uma estomatologista e uma otorrinolaringologista

Todas as semanas, o Rafael vai a uma consulta com uma psicóloga, numa clínica privada em Penafiel. Na escola, as queixas sobre o seu comportamento são mais que muitas e em casa as coisas nem sempre correm bem. E a culpa não é dele. Com 9 anos o Rafael nunca conseguiu adormecer sozinho. É uma criança agitada, ansiosa, impulsiva e profundamente dependente da mãe. 

Desesperada com o comportamento do filho, a mãe, Fernanda Pinto, resolveu levá-lo a uma clínica privada. Foi visto por um pediatra e por uma psicóloga que consideraram que o Rafael apresenta "uma deficiência psicológica, caracterizada por uma má gestão e controlo dos impulsos e que revela alterações do sono associado a elevados níveis de ansiedade". 

Fernanda Pinto está desempregada, o marido é o único sustento da casa. Não têm como pagar uma consulta semanal numa clínica privada e por isso pediram ajuda ao Estado. Entregaram todas as declarações médicas à Segurança Social na esperança de obterem a bonificação por deficiência e o subsídio de educação especial para o Rafael. 

Uma prestação que é dada às famílias com maiores dificuldades económicas para suportar as despesas de saúde dos filhos. Poucos meses depois de ter sido feito o pedido, mãe e filho foram convocados para se apresentarem no Serviço de Verificação de Incapacidades da Segurança Social do Porto. Uma convocatória que se transformou numa consulta relâmpago. 

À espera da criança estava uma médica estomatologista e uma otorrinolaringologista que, segundo a mãe, quiseram apenas saber qual era o clube de futebol do Rafael e se tinha namorada. Recusaram identificar-se e deram a consulta por terminada. 

Pouco tempo depois, veio a resposta ao pedido de bonificação por deficiência. O processo foi indeferido, porque as duas médicas consideraram que o Rafael "não apresenta nenhuma deficiência permanente", apesar de todos os relatórios médicos que atestavam exatamente o contrário. 

Chocado, José Manuel Silva, Bastonário da Ordem dos Médicos, considera que algo de muito errado se está passar com as juntas médicas da Segurança Social. Por isso, aconselha os pais a apresentarem queixa e promete mão pesada caso se confirme que os médicos agiram contra os interesses dos doentes. 

Também o Provedor de Justiça já se pronunciou sobre as prestações sociais da Segurança Social e não tem dúvidas sobre qual deve ser a composição destas juntas médicas. José Francisco de Faria Costa considera que "tem de haver pessoas, sob o ponto de vista científico, credenciadas que possam fazer uma avaliação séria, límpida e justa". 

A TVI contatou a otorrinolaringologista e a estomatologista que avaliaram o Rafael. As duas médicas recusaram fazer qualquer comentário. 

Inês, uma menina com paralisia cerebral

De um ano para o outro, e sem que nada mudasse no seu estado de saúde, Inês Pereira perdeu o subsídio de educação especial. Dinheiro que servia para pagar as sessões de terapia ocupacional que tinha aqui, nesta clínica em Amarante. 

A Inês tem 10 anos, foi uma bebé prematura que nasceu às 29 semanas com paralisia cerebral. Até aos 3 anos, foi acompanhada no Hospital Padre Américo, em Penafiel. Lá fez as primeiras terapias, mas o pediatra que a acompanhou achou que a Inês precisava de mais e que "por limitações de ordem técnica e meios humanos, o serviço de medicina física do hospital, não dava a resposta necessária que a criança necessitava". 

Inês foi encaminhada para uma clínica privada onde passou a ter terapia ocupacional, uma vez por semana, subsidiada pela Segurança Social. Só que no ano passado, a verba do Estado foi cortada. E sem subsídio, a Inês abandonou a terapia. 

Apesar dos relatórios que atestam a incapacidade permanente da Inês, passados por hospitais públicos, pelo Centro de Paralisia Cerebral do Porto, por médicos e terapeutas de clínicas privadas, apesar de ser óbvia e visível a deficiência da Inês, apesar de tudo, a Segurança Social indeferiu o pedido alegando que a Inês "não possui comprovada redução permanente de capacidade física". 

Os pais contestaram a decisão da Segurança Social mas o pedido voltou a ser recusado. Desta vez porque a Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares considerou que a Inês não tem necessidades educativas especiais, ou seja, não está referenciada pela escola, ao abrigo do decreto-lei 3/2008. Um decreto que regulamenta o ensino especial, ou seja, que identifica as crianças com dificuldades de aprendizagem e os apoios que a escola deve prestar. Só que a Inês não tem qualquer problema cognitivo, até é boa aluna, logo não deveria estar, sequer, abrangida por esta lei. 

Contactada pela TVI, a Segurança Social confirma que a Inês, bem como o Rafael não têm direito ao subsídio de educação especial. A Segurança Social justifica-se dizendo que os dois não estão referenciados pela escola porque não apresentam dificuldades de aprendizagem. Quer isto dizer que, como até são bons alunos, a Inês e o Rafael não têm direito ao subsídio que serve para pagar os tratamentos. 

Nesta campanha de poupança cega que muitos consideram imoral, o caso da Inês e do Rafael estão longe de ser os únicos. 

A TVI teve acesso a dezenas de cartas que indeferem pedidos de subsídio justificados numa resposta "tipo", sempre igual para as mais diferentes situações. Cartas onde se diz que a criança não tem acesso às prestações da Segurança Social por não estar referenciada pela escola como aluno com necessidades educativas especiais ao abrigo decreto- lei 3/2008. 

Carla Macedo é psicóloga, trabalha numa clínica privada em Amarante. Já contestou dezenas de decisões da segurança social, indeferimentos que se baseiam no facto de as crianças não estarem referenciadas pelo famigerado decreto 3/2008. 

O problema é que não é este decreto que regulamenta o subsídio de educação especial mas antes o decreto regulamentar nº 14/81. Nele pode ler-se que se "garante uma prestação social a todas as crianças com comprovada redução permanente da capacidade física, motora, orgânica, sensorial ou intelectual e que se designam por deficientes". 

Um protocolo assinado em outubro de 2013 entre o Instituto da Segurança Social e a Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares veio alterar as regras e veio, sobretudo, lançar a confusão. Segundo o protocolo, não são os médicos, mas antes a escola que tem que referenciar a criança...é a escola que deverá dar início a todo o processo indispensável para a atribuição das prestações familiares pagas pela Segurança Social. Mas, isso não está a acontecer, pelo menos em alguns agrupamentos onde há professores que se recusam a identificar os alunos que precisam de ajuda.

Joana, uma criança com uma malformação congénita

Neste processo de atribuição de subsídios nada é simples, nem parece ser muito coerente. Joana Vieira está referenciada pela escola como aluna com necessidades educativas especiais mas, apesar disso, está há quase um ano à espera de saber se tem ou não direito ao subsídio da Segurança Social. 

Joana tem 10 anos e nasceu com uma agenesia do maxilar. Em Santiago de Piães, distrito de Viseu, não há quem não a conheça. O rosto da Joana apareceu nos cartazes das manifestações que em março do ano passado juntaram centenas de pais à porta das sedes regionais da Segurança Social. 

A cara deformada da Joana é resultado de uma malformação congénita. Ao longo dos anos foi sujeita a várias cirurgias, mas ainda está previsto fazer outras tantas. A última foi adiada a pedido da mãe por não ter sequer dinheiro para pagar as deslocações ao Porto. 

Joana tem grande dificuldade em articular as palavras, tem défice cognitivo e um atraso global do desenvolvimento. Mal sabe ler, anda no quarto ano mas está a aprender matéria do primeiro. Uma vez por semana tem uma sessão de 45 minutos de terapia da fala, uma ajuda valiosa que pode acabar a qualquer momento. 

O pedido de subsídio para pagar a terapia da Joana deu entrada na Segurança Social em junho de 2014...mas até agora continua “a aguardar deserção”, ou seja, continua a aguardar resposta. E já estamos em maio. 

Bruno, um hiperativo com défice de atenção diagnosticado aos 8 anos

Há 12 anos que Bruno da Silva anda de médico em médico, de hospital em hospital. Bruno sofre de hiperatividade e défice de atenção. Aos 8 anos começou a ser seguido no Hospital de Santo António. 

Desde os 8 anos que toma Ritalina, um medicamento estimulante do sistema nervoso central. Em 2011, a médica que o acompanha encaminhou-o para um psicólogo, numa clínica privada e a mãe requereu o subsídio de educação especial para fazer face à despesa. 

Um ano depois, Bruno recebeu uma convocatória para se apresentar na segurança social de Braga. A mãe, Maria das Dores, conta que a avaliação não demorou mais do que cinco minutos e que apenas perguntaram o nome, a idade e pouco mais. 

O processo foi indeferido, para grande espanto e total desespero da mãe. É que durante os 11 meses em que esteve à espera da resposta da Segurança Social decidiu levar o filho a uma clínica privada em Guimarães. Depois da recusa da Segurança Social, Maria das Dores teve de retirar o filho da terapia e ainda ficou a dever dinheiro à clínica. Revoltada, apresentou queixa na Ordem dos Médicos e a ordem decidiu fazer nova avaliação ao Bruno. 

Clínico que presidiu à equipa de Braga condenado pela Ordem dos Médicos 

A decisão da Ordem dos Médicos só chegou em fevereiro deste ano, três anos depois de a Segurança Social ter recusado o subsídio ao Bruno. A ordem decidiu punir com pena disciplinar de advertência o médico que presidiu à equipa de Braga, por considerar que violou os seus deveres deontológicos. 

No acórdão do Conselho Disciplinar, a que a TVI teve acesso, pode ler-se que "o parecer emitido pela equipa multidisciplinar é incompatível com o estado clínico do requerente e que o arguido não considerou a informação clínica atinente ao doente nem fundamentou a sua decisão". 

Maria das Dores não perdeu tempo e já fez, na Segurança Social, novo pedido de subsídio referente ao ano 2011 baseado na avaliação da ordem dos médicos. Mas ainda não teve resposta. 

À TVI, a Segurança Social disse que o subsídio do Bruno foi recusado porque ele não apresentava uma redução permanente de capacidade. Mas os relatórios médicos que constam do processo atestam exatamente o contrário: dizem que o Bruno “é portador de deficiência motivada por uma redução permanente de capacidade sensorial e intelectual”. 

A TVI também contactou o médico que presidiu à equipa de Braga que avaliou este processo, mas o médico em causa recusou-se a prestar declarações.

Pais em protesto! 

Em março do ano passado, o ministro Mota Soares esteve na mira das famílias a quem tiraram o subsídio. Houve manifestações um pouco por todo o país, mas apesar das queixas, das críticas e dos protestos, o ministro da Solidariedade Social garantia, na altura, que não faltava dinheiro para pagar os subsídios de educação especial. Na verdade, o orçamento até cresceu este ano. O que Mota Soares nunca disse é que houve um corte de sete milhões de euros no ano passado. 

A TVI contactou o Ministério de Mota Soares que remeteu todo e qualquer esclarecimento para o Instituto da Segurança Social. Contatado o Instituto, a presidente Mariana Ribeiro Ferreira recusou o pedido de entrevista. 

A TVI pediu também, por várias vezes, uma reação a alguém responsável do Ministério da Educação mas não obteve qualquer resposta.

Fonte: TVI24 por indicação de Livresco

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