quinta-feira, 26 de junho de 2014

Os “especiais”

Folheando a imprensa e a publicidade que nela se publica, descobrimos que há dois tipos de publicidade: a “inclusiva” e a “exclusiva”. Explico-me: há artigos que se promovem afirmando que agora todos os podem possuir e ter acesso a eles. “Agora você também tem possibilidade de…”.

O que antes era exclusivo tornou-se acessível e possível. Esta febre da “inclusão” tem chegado aos mais diversos campos da publicidade: já se podem ler anúncios em restaurantes que anunciam um “menu inclusivo” (uma refeição que inclui sopa, sobremesa, etc.) e até uma conhecida marca de bagagem anuncia malas inclusivas (isto é aquelas que são capazes de levar tudo, mesmo tudo). Mas há também a publicidade exclusiva que se esforça por colocar o seu produto não como algo que está ao alcance de todos, algo vulgar e posse e usufruto fácil mas sim como um privilégio que está só alcance de alguns, de uns poucos eleitos que, por terem dinheiro, bom gosto ou sofisticação, só esses os podem possuir e alcançar.

De certa forma estas duas formas de publicidade falam de casos “especiais”: a publicidade “inclusiva” promove os consumidores a “especiais” porque podem, sem esforço ter acesso a um produto de qualidade; a publicidade “exclusiva” promove as mercadorias especiais que só poderem ser desfrutadas por pessoas também elas especiais.

O mercado, o sacrossanto mercado que nos impõe práticas e valores draconianos, promove desta forma as características “especiais” dos consumidores e das mercadorias. Desta forma uns se sentem valorizados por incluídos e outros se sentem valorizados por serem “positivamente excluídos” ao terem acesso a artigos exclusivos. Mas uns e outros procuram “o especial”.

Na Educação também se procura o “especial”. Parece estranho que, numa empresa social que se destina a todos, que é inclusiva por natureza, mesmo assim se use a palavra “especial”. Mas afinal quem são os “especiais” em Educação? Bom, os especiais são os que não são normais – parece muito lógico. Teríamos assim dois tipos de alunos os “especiais” e os “normais” sendo que os especiais são aqueles que não são normais. Para os alunos normais a estrutura escolar funciona tal como existe e para os especiais a escola tal como está organizada não funciona (tem de ser mudada). Esta aparente transparência conceptual encerra enormes problemas e erros. Vamos ver:

Antes de mais esta divisão entre “normais” e “especiais” é artificial e incorreta. Muitos dos alunos não especiais precisam de apoio para que possam aprender na escola tal como ela existe. E lembro: o estudo acompanhado, o trabalho dos pais em casa, as “explicações”, as “salas de estudos”, etc. , mostram que os alunos normais para o serem têm que atravessar frequentemente fases de “especiais”. Ora aqui está um tema interessante: o que é que há de especial nos alunos normais? Por outro lado, os alunos que por terem uma condição de aprendizagem de deficiência ou de saúde (não é demais insistir que não são a mesma coisa) que manifestamente coloque a escola em dificuldade para o educar com os meios que dispõe, são crianças e jovens com conhecimentos, experiências e vivências em tudo semelhantes aos seus colegas sem estas condições. E assim vemos que os “especiais” atravessam fases de alunos “normais”. Se há esta enorme contaminação e comunhão entre as vidas, as experiências e as vivências, porque havemos de insistir em separar especiais e normais?

Outorgar o estatuto de especial a alguém pode parecer - como vimos no exemplo da publicidade – um privilégio. Pode parecer, mas não é. E não o é porque demonstra a fragilidade da nossa organização social ao não conseguir responder capazmente às diferenças entre as pessoas sem lhes atribuir um estatuto “especial”. Por outro lado, é interessante investigar o que é que se ganha e o que é que se perde com um estatuto de “especial”. Certamente que ser “especial” na escola ou na sociedade constitui um forte argumento para se economize nos direitos e nos meios de desenvolvimento que acharíamos imprescindíveis se a pessoa não fosse especial. Há pouco tempo um educador perguntava-me espantado porque é que um aluno com paralisia cerebral queria ir ao futebol. Será que ele faria a mesma pergunta se o aluno não fosse “especial”?

“Necessidades educativas”, todos os alunos as têm e todas são normais. Há sim necessidades que precisam de respostas menos habituais mas isso não significa que sejam especiais, que sejam únicas e radicalmente diferentes das outras. Significa, tão só, que as respostas que têm que ser dadas às suas necessidades têm de ser adaptadas e adequadas de forma a poderem ser recebidas pelo aluno.

A criação da categoria de “especial” é útil para vender mercadorias mas parece muito perniciosa quando se trata de assegurar o direito a todos – a todos os “normais” – à Educação.


David Rodrigues
Professor Universitário, presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial

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