Depois de ter passado dois anos num colégio católico de Lisboa em que dominavam a rigidez, a competição e o medo do fracasso, as evidentes consequências nefastas dessa experiência levaram os meus pais a mudar-me para outra escola e, para minha felicidade futura, escolheram a "École Française de Lisbonne", com ensino misto, onde entrei, em 1946, aos 9 anos de idade.
Essa 4.ª classe passava-se em dois tipos de cursos: um em Português, três dias por semana (com a Madame Pinto, de que me lembro com imensa saudade), e outro em Francês, nos restantes dois dias, com a Madame Baptista, que não me deixou saudades, mas que me ensinou a recitar de cor poemas do Victor Hugo e de Lamartine que ainda posso reproduzir. No entanto, o encanto daquela escola ultrapassava as salas de aula daquela casa antiga e acolhedora, em que, em certas aulas, tínhamos que passar por cima de carteiras para ir para o nosso lugar. Havia um ambiente de alegria, de vida e de comunicação que me deixou uma marca de afetividade e de segurança que perdura depois destes quase 70 anos.
Não fiz a 4.ª classe que era destinada aos meninos que não continuavam a estudar ou iam para o ensino técnico, mas sim o exame de admissão, que tinha lugar no Liceu Maria Amália. Não me lembro durante quantos dias duravam essas provas - primeiro escritas e depois orais -, mas lembro-me que pareciam estender-se por várias semanas. Tudo naquele enorme casarão frio e imponente era aterrador. Não conhecia os professores nem as colegas que tinham nomes que não eram começados por A como o meu e, ao entrar na sala do exame, sentia um medo imenso.
Penso que aquelas provas avaliaram não tanto o que eu sabia, mas a minha capacidade de enfrentar o nervoso e de vencer o sentimento de solidão e de abandono em que me encontrava. Felizmente, o ano lectivo seguinte voltou e, com ele, o feliz reencontro com a École Française. Dois anos mais tarde, voltaram os exames em liceus oficiais, mas, aos 11, 14 e 16 anos, a minha capacidade de enfrentar aquela difícil prova era evidentemente muito maior.
Isto passou-se há quase 70 anos, e não queria acreditar, hoje, dia 15 de Março de 2013, quando li no PÚBLICO a notícia de que se prevê voltar a exigir que crianças do 4.º ano voltem a fazer exames em escolas diferentes daquelas que frequentaram desde o jardim de infância ou desde o 1.º ano. Como é possível renegar toda a evolução que nestas sete décadas se verificou na orientação educativa? Para além do facto de, em vários dos países considerados mais avançados nesta área, se terem eliminado os exames formais ao longo de toda a escolaridade básica (escrevi no Facebook da Rede Inclusão um pequeno texto sobre isso referindo o que se passa na Finlândia), em Portugal vão buscar-se os exemplos da escola primária do tempo dos avós ou mesmo dos bisavós da maioria dos alunos que agora povoam as nossas escolas.
Julgo que os legisladores que estão a decidir estas medidas consideram que faz parte integrante da aprendizagem das crianças o sofrimento e a resistência ao stresse. O prazer de aprender, a confiança dada por ambientes amigáveis, a autoconfiança gerada pelo apoio que evita o fracasso (em vez das profundas marcas criadas pelo insucesso) estarão hoje tão longe dos responsáveis a quem os pais entregam, durante anos, a evolução dos seus filhos?
Resta-nos uma esperança: a qualidade, a força, a perseverança, a capacidade de luta dos professores, que, quando acabam a sua formatura, fazem para si próprios o juramento de "tornar mais capazes e mais felizes as crianças que lhes foram confiadas".
Ana Maria Bénard da Costa
Professora aposentada, ligada à Rede Inclusão
In: Público
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