domingo, 14 de maio de 2023

Há duas vezes mais crianças com seis anos que ficam no pré-escolar

Érica Rodrigues matriculou a filha nesta quinta-feira na "escola primária". Camila ainda tem cinco anos e só celebrará os seis em Outubro, mas desde os três que tem uma mochila onde guarda o material que pretende utilizar quando entrar no 1.º ano. Está “ansiosa” para a nova fase, confirmou a mãe, de 36 anos, ao PÚBLICO: “Há dois anos que a escola é um objectivo para ela.”

Como só celebra seis anos depois de 15 de Setembro, os pais de Camila podiam matricular a filha no 1.º ciclo com cinco anos ainda, pedindo que entrasse no ensino básico se houvesse vagas, ou então esperar que ela completasse os seis anos para iniciar o 1.º ano.


O instinto de Érica, que vive em Lisboa e trabalha numa empresa tecnológica, dizia-lhe para esperar: queria proteger a filha por mais um ano da frustração de errar e da pressão dos testes: “A Camila tem noção da necessidade de aprender, mas é a primeira vez que vai sentir este tipo de tensão.”

Mas depois de consultar psicólogos, o pediatra, a educadora, Érica percebeu que se a filha ficasse mais um ano na pré-escola, podia desenvolver outra frustração: ver os colegas avançarem, enquanto ela ficava à espera da experiência pela qual tanto anseia. Camila teria de acrescentar 365 dias ao calendário onde já vai contando o tempo que lhe falta até entrar no 1.º ano.

Embora em casa a menina parecesse pouco interessada em algumas tarefas — como a escrita, exemplifica a mãe —, na escola era totalmente empenhada e tendia a procurar mais actividades do que alguns dos seus colegas. Por isso, Érica decidiu aplicar as recomendações dos peritos que consultou e matricular Camila no 1.º ano de um percurso que terá pelo menos 12.

Mas casos como este são cada vez menos comuns, indicam os dados da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC).

O número de crianças que permanece no ensino pré-escolar com seis anos de idade celebrados até ao último dia do ano civil, ao invés de avançar para o 1.º ciclo ainda com cinco, mais do que duplicou entre as épocas lectivas de 2010/2011 e 2020/2021.


Segundo os dados do portal “Educação em Números”, no ano lectivo 2020/2021 havia 12.740 alunos que, embora já tivessem seis anos a 31 de Dezembro de 2020, ainda frequentavam o ensino pré-escolar. Dez anos antes, em 2010/2011, eram menos de metade: 5346 crianças.

Os dados tornam-se ainda mais expressivos se tivermos em conta que o número de nascimentos decresceu quase 25% do ano 2004 para 2014, quando estas crianças nasceram.
Maturidade, autonomia. O que pesar na decisão

Um despacho normativo de 2017 fixou que a matrícula no 1.º ano é obrigatória para todas as crianças que completam seis anos até ao dia 15 de Setembro do ano em que essa nova época lectiva começa. O ingresso das crianças nascidas depois dessa data e até ao último dia do ano é condicional. Os tutores podem matriculá-las no 1.º ano à mesma, mas a entrada só será permitida se ainda existirem vagas.

O Ministério da Educação não respondeu ao PÚBLICO sobre quantas crianças começaram o 1.° ano com cinco anos no último ano lectivo, nem quantas não o puderam fazer por falta de vagas. Mas Fernanda Viana, especialista em Psicologia da Educação na Universidade do Minho, revelou que os casos de falta de vagas para as crianças em situação condicional são pontuais e verificam-se sobretudo em zonas com uma elevada densidade populacional. Só que “há mais pais a escolherem esperar”.

Foi o caso de Rita Cunha. Há sete anos, a assistente social de Almada estava na mesma situação que Érica porque o filho mais velho, Guilherme, só celebraria seis anos em Dezembro. Ouviu opiniões de psicólogos e educadores, mas só um deles incentivou a mãe a matriculá-lo no 1.º ciclo. Todos os outros defenderam que Rita devia esperar até que o filho completasse seis anos.

Em entrevista ao PÚBLICO, a mãe, agora com 45 anos, explica o que pesou na sua decisão: “Era importante ganhar maturidade, brincar mais um ano e não ter pressão de iniciar logo a aprendizagem.” O facto de os colegas de turma terem evoluído para 1.º ciclo não entrou na equação: como a família estava a mudar de cidade, Guilherme já teria de mudar de escola e encontrar um novo núcleo social. Agora, com 12 anos, é “um aluno de mérito”.

De todos os aspectos que Fernanda Viana aconselha os pais a considerarem para tomarem uma decisão, o facto de os colegas entrarem no 1.º ano mais cedo do que o filho é o que menos deve pesar. Outros mais preponderantes, diz, são a maturidade social (a forma como a criança se relaciona com os pares), a capacidade de lidar com a crítica, a qualidade do ensino pré-escolar que recebeu, a sua autonomia para se organizar e completar tarefas (como os trabalhos de casa) e a maturidade cognitiva. E não conta apenas a capacidade de ler e escrever: “A matemática no 3.º ano é muito exigente, mas não costuma ser tão estimulada no pré-escolar.”

"Na dúvida, não avançar"

Isabel Abreu-Lima, especialista em Psicologia da Educação na Universidade do Porto, é apologista da decisão de Rita Cunha. “Na dúvida, é melhor não avançar.”

“Ficar para trás é o menor dos males”, defende, em entrevista ao PÚBLICO. A investigadora concorda que há excepções: as crianças em situação condicional podem avançar para o 1.º ano quando estão “muito avançadas" — cognitiva e socialmente.

É que, quando um aluno chega ao 1.º ano, encontrará um ambiente totalmente diferente — algo que Isabel questiona: “Porque é que dos cinco para os seis anos se pede um salto tão grande se, em termos de idade, não é o é?”

A psicóloga considera que deve haver flexibilidade no ensino para que cada criança receba os estímulos que são mais adequadas para ela, independentemente de estar no pré-escolar ou na primária.

É o mesmo apelo que o pediatra Alberto Caldas Afonso, do Centro Hospitalar do Porto, deixa. “Há ciclos para brincar, estudar, trabalhar e viver a reforma que devem ser respeitados”, considera o clínico. A idade é um indicador, mas cada caso é um caso. Os sinais a que os pais podem estar atentos são a capacidade de aprender canções, contar histórias e terminar jogos. Mas o ideal é fazer uma avaliação psicológica. E ouvir os educadores, que têm termo de comparação com dezenas de crianças: “Conhecem-nas como ninguém”, termina Isabel Abreu-Lima.

Fonte: Público

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