domingo, 21 de maio de 2023

O analfabetismo funcional, os rankings e Singapura

Poderia começar esta crónica com dados, números e posições em rankings. Mas escolho começá-la com um país localizado no Sudeste Asiático e composto por 63 ilhas. Esse país, de parcos recursos naturais, escolheu desenvolver a sua economia apostando na melhor matéria-prima de que dispõe: as pessoas. E fê-lo da única forma que torna realmente possível quebrar ciclos e inverter tendências. Esse país chama-se Singapura e apostou todas as suas fichas na educação.

Os dados são unânimes: os estudantes de Singapura são dos mais bem preparados do mundo. quer falemos no ensino secundário, quer no ensino básico. E a diferença para os restantes países da OCDE faz com que, por exemplo na área da matemática, os alunos de Singapura, aos 15 anos, estejam cerca de três anos adiantados em conhecimentos comparativamente aos seus colegas dos Estados Unidos da América.

No que toca à literacia em leitura, matemática e ciências, Singapura tem sido um verdadeiro caso de estudo. E esta semana, quando foram divulgados os resultados do PIRLS 2021 (programa que avalia a literacia em leitura de estudantes de dezenas de países no final do 4.º ano de escolaridade), ninguém ficou surpreendido quando percebeu que Singapura voltou a classificar-se em primeiro lugar, com uma média de 587 pontos, mais 67 pontos do que Portugal, que ocupa o 22.º lugar no ranking de 43 países.

E, sim, eu sei que os rankings não são tudo e que há quem os abomine de morte por nunca contarem a história toda. Assim sendo, e antes de elogiar o que de bom se tem feito ao nível da educação em Singapura, deixem-me dizer que tenho a perfeita noção de que o sistema brutalmente competitivo do país faz com que os estudantes desenvolvam um medo muito maior de falhar do que os estudantes de outros países. Não duvido de que a pressão possa chegar a ser desumana para as crianças que, no final do ensino primário, que dura seis anos (4+2) e que é obrigatório no país, têm de realizar um exame de saída da escola que determina a sua progressão futura. É consoante a nota deste exame que as crianças são depois encaminhadas para o ensino secundário ou para o ensino profissional.

Então, sim, sou perfeitamente capaz de reconhecer as falhas deste sistema, mas não consigo conceber que continuemos a ignorar os seus pontos positivos. De uma perspectiva mais pessoal, deixem-me contar-vos que decidi que o Pedro, que vai iniciar o primeiro ciclo em Setembro, vai manter-se no colégio onde agora frequenta o pré-escolar. E esta escolha deve-se a duas importantes razões: em primeiro lugar, o facto de ele ser surdo e de a única Escola de Referência para a Educação Bilingue de Alunos Surdos ficar a 60 quilómetros da nossa casa e, em segundo, o facto de este colégio ensinar Matemática através do método de Singapura.

De forma resumida, o que este colégio fez foi enviar a Singapura um grupo de trabalho para perceber quais as grandes diferenças no ensino da Matemática daquele país para, depois, poder adaptá-las à realidade portuguesa. E o que acontece hoje é que a Matemática é ensinada de forma muito mais intuitiva e totalmente diferente das restantes escolas, o que obrigou, inclusive, a que o colégio criasse os seus próprios manuais. E agora, em modo confessional, assumo que me custa a entender porque é que o Ministério da Educação não faz um caminho semelhante e não procura trazer para Portugal aquilo que de melhor se faz a nível de ensino em cada um dos diferentes países.

E se o PIRLS de 2021 não chegar para percebermos a qualidade académica dos alunos de Singapura, podemos sempre analisar os dados do Programa de Avaliação Nacional de Alunos (PISA, em inglês), repetido a cada dois anos e coordenado pela OCDE, em que cerca de 600 mil estudantes do secundário de 71 países realizam um teste de duas horas que avalia a sua literacia em leitura, o seu domínio da matemática, das ciências e a sua capacidade de resolução de desafios em contexto de vida real/prática. E aqui, outra vez, Singapura dá cartas, com resultados de 549 pontos em literacia em leitura, 569 pontos em matemática e 551 pontos em ciências. Só para ajudar a comparação deixem-me referir que, nestes domínios, a média da OCDE foi, respectivamente, de 487, 489 e 489 pontos.

Claro que não defendo um sistema baseado apenas em rankings, em que o bem-estar e a saúde mental das crianças sejam pouco mais do que pormenores, mas confesso que a falta de literacia em leitura, por exemplo, é coisa para me adoecer. Crianças e jovens que lêem, mas que são incapazes de interpretar. Juntam letras, formam palavras, mas não compreendem o que elas lhes querem dizer. E na área das ciências? Imaginam os perigos de formarmos uma geração acrítica, incapaz de compreender o método científico e totalmente permeável à banha da cobra debitada por impostores? Nenhum de nós quer uma sociedade de “terraplanistas”, verdade?

Não podemos copiar tudo o que se faz em Singapura, mas há muito que lá podemos beber. E uma dessas coisas é a forma de tratar os professores, que são, de longe, a carreira mais admirada e valorizada do país. A selecção dos futuros professores começa cedo e estes são escolhidos de entre os 5% de estudantes do ensino pré-universitário (que dura entre dois e três anos) com melhor desempenho académico. Mas nem todos os pré-seleccionados ficam; aliás, apenas um em cada oito é convidado a ficar depois de ser avaliado em termos de vocação, humanismo e capacidade de comunicação. E mal entram no curso passam a ser contratados e a poder usufruir de salãrio, férias, seguro de saúde e outros benefícios. Todos os que terminam a sua formação para professores têm emprego garantido. O desemprego é inexistente nesta classe.

Para além destas exigências na formação e nas vantagens óbvias no início de carreira, os professores de Singapura têm ainda direito a 100 horas anuais para desenvolvimento profissional e, na sua avaliação anual, os que mais se destacam recebem importantes prémios financeiros. Também os directores de escola têm formação própria e rigorosa e sabem que a cada 6/8 anos têm de mudar de estabelecimento de ensino.

E a juntar à questão dos professores o país desenvolveu um método de ensino baseado na compreensão e na resolução de problemas. É um método dinâmico, muito virado para casos práticos e contextos reais. Um modelo que pôs Singapura, um país com cinco milhões de habitantes, no topo do mundo da educação.

Um em cada sete alunos em Singapura, aos 15 anos, tem um pensamento matemático avançado. A média da OCDE neste patamar é de 2,4%. Em Singapura, 91% dos alunos atingiram um nível elevado a ciências e são os melhores do mundo em leitura e análise de textos.

A minha avó sempre me disse que devemos aprender com os melhores. Se o ministro da Educação a tivesse conhecido, a esta hora já tinha os bilhetes de avião comprados.

Carmen Garcia

Fonte: Público

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