domingo, 7 de maio de 2023

A (in)diferença na inclusão

Há dias, deparámo-nos com um artigo publicado no Observador cujo título nos deteve de imediato “A inclusão pedagogicamente assassina”. Curiosos especulámos sobre o que viria a seguir e, a medo, avançámos com a leitura. Antes não o tivéssemos feito.

Apresentou-se-nos o relato de uma situação que expõe grotescamente uma criança estrangeira que integrou recentemente um 1º ano de escolaridade numa escola de 1º ciclo do ensino básico.

Os comportamentos desta criança são expostos através de uma liberdade de escrita que quase descai para a xenofobia. Enquadremos o relato: uma criança que chega a um país em tudo diferente daquele que abandonou, longe de tudo o que já conheceu e para quem a escola deveria ser o porto-seguro dos seus anseios e das suas frustrações tão precoces; uma criança que chega a uma realidade nova na qual vê, pela primeira vez, a esperança a correr à solta.

Vinda de outro país, e possivelmente numa situação social fragilizada, naturalmente não trazia consigo nenhuma referência às suas necessidades específicas. Contudo, tratando-se de uma criança estrangeira, de 6 ou 7 anos, recentemente chegada a Portugal, acreditamos que fosse perceptível, à primeira vista, que iria necessitar de apoio por parte de um adulto para poder, de forma estruturada, ser integrada na escola, na sua turma, no refeitório, no recreio… o que, pela descrição feita não aconteceu. E porquê? Numa leitura acrítica do artigo somos levados à constatação de que se trata de um problema de inexistência de recursos. Contudo, não nos parece que esta seja a verdadeira razão. Os recursos, ainda que possam escassear, devem ser mobilizados consoante as necessidades mais prioritárias.

Falamos de uma criança – o texto informa-nos mais à frente – com um quadro de perturbações do espetro do autismo. Uma criança que, veja-se, “não fala uma palavra de português”! Uma criança que “anda desorientada nos recreios; (…) não pede para ir à casa de banho; se a professora não adivinha, faz as suas necessidades onde está (…); (…) grita, risca, rasga, morde (…)”. A descrição de comportamentos vai avançando, na tentativa de convencer o leitor de que se trata de uma situação grave e que se está perante um ser indomável.

Grave é ter-se constatado que esta criança tinha comportamentos que punham em causa a sua própria segurança, a segurança dos colegas e adultos e a sua dignidade enquanto ser humano. Esta situação foi visível logo no 1º dia de aulas, mas, ao que parece e pelo que é descrito, permitiu-se que a criança fosse exposta a situações altamente humilhantes do ponto de vista humano, sem que alguém, no tempo certo, tivesse intercedido e acionado todos os meios e recursos para a ajudar. Em vez disso permitiu-se que esta criança, indefesa, perdida e perturbada mostrasse a toda a escola o que é estar naquela condição e não ter ninguém capaz de, no imediato, a retirar daquele filme de terror que, no referido artigo, é descrito de forma pormenorizada: “No primeiro dia do seu “despejo” na escola, correu pelos corredores, rebolou no chão, bateu nas paredes e portas que encontrou, entrou pelas salas, atirou-se para o chão, gritou, chorou, mordeu e bateu em todos os professores e auxiliares que a queriam ajudar.” Quererão os autores sugerir que esta criança deveria ser privada de uma escola? Qual seria a melhor solução no entender dos autores? Deixá-la ao abandono? Deixá-la em casa?

Faremos uma pequena ideia das circunstâncias em que esta criança chegou à escola, talvez único local estruturado e desejavelmente estruturante, que teve oportunidade de conhecer até hoje? Não fosse ter-se deparado com profissionais que não se sentem pedagogicamente competentes para encontrar as melhores soluções, sem a presunção de achar que a escola é um lugar apenas para alguns, e talvez esta situação não tivesse ganho estas proporções. Profissionais que parecem demitir-se das suas funções pedagógicas que aliás, como se vê no título deste artigo, são remetidas para um conceito “A inclusão”, como se o mesmo existisse sem a intervenção humana. Importa relembrar que a inclusão não existe fora dos ambientes, antes dependendo diretamente daqueles que a tornam possível: os professores, os grandes especialistas em pedagogia.

Podemos ainda ler que, dois meses depois da integração desta criança na escola, “promovidas as medidas que os burocratas de serviço vazaram no citado Decreto-Lei n.º 54/2018” a criança começa a estar “incluída”, “integrada”. A utilização das “aspas” em palavras como “incluída” e “integrada” a propósito da aplicação das referidas medidas, faz pouco dos alicerces fundamentais da construção de uma escola que cumpra verdadeiramente a sua função de socialização e se mostre como espaço de participação plena. Presumimos que, para os autores, seria de esperar que as medidas do Decreto-Lei n.º 54/2018, por si mesmo, resolvessem todas estas situações, como por magia, sem a intervenção dos peritos em educação: os professores. Ou então que o problema é a existência do Decreto-Lei n.º 54/2018; se não existisse, certamente seria tudo mais fácil…

Após referenciada à Equipa Multidisciplinar de Apoio à Inclusão (EMAI) do Agrupamento foram propostas algumas medidas/ações concretas: a presença constante de um adulto por perto na sala de aula, recreio e refeitório; a criação de um espaço acolhedor (com um tapete e almofadas) na sala de aula ou num gabinete para permitir o retorno à calma em momentos de descompensação. Para nós, também professores habituados a trabalhar com crianças com NE e em escolas onde os recursos são sempre poucos, parecem-nos medidas exequíveis e que, a serem consideradas, trarão certamente resultados positivos para todos.

No entanto, a propósito destas medidas, os autores não disfarçam o sarcasmo, presente em expressões como “bonitas medidas” ou “nada existe” que, de tão imprudentes e desconhecedoras, chegam a ser, naturalmente, constrangedoras para todos os professores. Os autores consideram, portanto, que a impossibilidade de se ter um adulto a acompanhar a criança em questão decorre da aplicação do Decreto-Lei n.º 54/2018. Ora tal significa não entender grande coisa, ou coisa nenhuma, sobre a gestão de recursos humanos de uma escola. Saberão estes dois professores que a escola tem a função de organizar e gerir autonomamente o processo de ensino/aprendizagem e que a responsabilidade de disponibilizar estes recursos é dela mesma?

Percebe-se que os autores opõem “(…) idiotas úteis que pariram o Decreto-Lei n.º 54/2018” àqueles que “(…) têm da Educação uma visão personalista”, a qual se subentende, será a dos próprios. Surgem então duas hipóteses: ou os autores se identificam com uma visão centrada na individualidade do aluno, valorizando as suas diferenças e competências específicas – a redação que assinam parece refutar esta hipótese; ou, por outro lado, a visão “personalista” que advogam será certamente a dos próprios, isto é, o modo muito personalizado como estes professores entendem a educação, neste século XXI. Talvez fosse então relevante explicar que a lógica do ensino de massas, fabril e uniformizador está felizmente em declínio, que não existem dois alunos iguais e que a solução para atender a esta enriquecedora heterogeneidade é precisamente diferenciar o ensino (dos professores) para assegurar a diferenciação das aprendizagens (de todos os alunos).

Os autores parecem esperar do citado Decreto-Lei que este personifique aquilo que os mesmos não são capazes de fazer – o que é lamentável e, no limite, deveria levá-los a uma introspeção acerca da opção por esta profissão. Quando desabafam dizendo que foram promovidas medidas que “(…) a lei consigna” para incluir e integrar (mais uma vez entre “aspas”) a criança em causa, percebe-se que têm da sua profissão – os autores são professores – uma visão burocrata, própria de um funcionário administrativo que cumpre cega e acriticamente os trâmites emanados pela tutela. O que é grave, uma vez que não existe nada no Decreto-Lei que não implique por parte dos professores, e bem, uma reflexão ponderada e um tomar de decisões congruentes com o objeto/contexto da sua aplicação.

Chega-se à triste conclusão que a verdadeira preocupação presente no artigo não é a criança, ou não fosse este um ato de protesto sabe-se lá contra quê. Lamentamos que na fúria desmedida da reivindicação de direitos dos professores caibam relatos desprovidos de qualquer pudor em expor uma criança a uma situação de tão grande vulnerabilidade, apenas para, forçadamente, querer passar a imagem que está tudo mal nas escolas e que a culpa é sempre, lá está, de quem está acima destas. Não se estranha por isso que o texto evoque a culpa de um ministro, que apelidam de “autista”.

Em suma, o artigo expressa uma pose cada vez mais costumeira de vitimização permanente e de um bota-abaixismo constante que pouco ou nada têm de consequente porque, na essência, falha na argumentação. No caso concreto, revela um pensamento que, tentando catequizar os fiéis da indignação, demonstra uma falta de humanismo gritante relativamente a esta criança e à sua família e uma ignorância sobre o papel do professor, o que é lamentável. Exibe também uma dessincronia relativamente à mudança, necessária e urgente, de uma escola bolorenta que no texto se insinua, para uma escola com uma lógica distinta. Uma escola em que a sala não tem dono, mais cooperativa, desmaterializada do espaço colegial, em que fazem falta professores genuinamente motivados e, talvez, com uma formação radicalmente diferente da atual.

Por tudo isto, o texto não deixa de ser pedagogicamente útil por mostrar, pela antítese, aquilo que não deve ser a conduta de um professor humanista e apologista de uma escola que não exclui e em que todas as crianças merecem sonhar com a sua livre participação.


Dídia Lourenço e João Pedro Reigado

Fonte: Observador

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