Alguém que já pontifica como membro do Governo no Ministério da Educação há mais do que meia dúzia de anos, estranhamente, só agora parece ter despertado para a crescente falta de professores que há muito se tem vindo a fazer sentir na escola pública. É assim que, à boleia do Decreto-Lei de Execução do Orçamento de Estado, saído há dias (DL n.º 53/2022, de 12 de agosto, art. 161.º), pretende o ministro João Costa enviar apressadamente para publicação em Diário da República um novo diploma legal que procede a uma profunda reconfiguração das habilitações próprias para a docência, baixando tanto o nível de exigência académica que até parece que, a partir de agora, quem quer que seja “serve” para “dar aulas”, o que, convenhamos, é diferente de ser professor.
A não ser que alguém ou alguma instância de soberania faça o sr. ministro arrepiar caminho nesta deriva de desqualificação da profissão docente e da qualidade de ensino, já neste ano letivo que está prestes a iniciar-se, por exemplo, as aulas de Português do 3.º Ciclo e do Ensino Secundário podem passar a ser lecionadas por “professores” que na sua formação académica disponham apena de 80 créditos nesta mesma disciplina, o que está manifestamente abaixo do número mínimo de créditos “bolonheses” ECTS ( European Credit Transfer and Accumulation) indispensáveis ao ingresso num mestrado em ensino nesta área, que seriam 120.
Mas, por exemplo, se for para lecionar Inglês no 3.º Ciclo ou Secundário, basta possuir apenas 60 créditos, em vez do tal pré-requisito de 120. E pasme-se, quem tenha uma licenciatura pós-bolonhesa em Psicologia passa a poder ser professor de Matemática!
E muitos outros exemplos, relativos a outros grupos de docência, igualmente elucidativos do abaixamento do nível de exigência, se podem extrair deste inconcebível projeto de diploma legal.
Conhecendo como conheço, pessoalmente, há dezenas de anos, o atual primeiro-ministro (desde os tempos em que pertencemos à mesma turma na faculdade e até ainda antes), custa-me crer que ele tenha conhecimento do que se está a preparar nesta sede, pois estas diretivas mais parecem uma regressão (no mínimo) aos anos 80 do século passado, período de forte explosão demográfica e de desenvolvimento da escolarização de massas, circunstâncias inversas das atuais, em que a natalidade tem vindo progressivamente a diminuir, infelizmente.
Regressão também porque há muito que se havia abandonado o conceito e, especialmente, a regulamentação de novos cursos em sede de habilitação própria, por esta se revelar assaz insuficiente à escola hodierna, tendo sido adotado exclusivamente o conceito de habilitação profissional, i. e., aquela que qualifica para o exercício da profissão docente.
De que serve ter-se instituído há alguns anos uma escolaridade obrigatória de 12 anos, se, em sede de habilitações próprias para a docência nos ensinos básico e secundário, parece estar-se a regredir aos antigos regentes escolares, instituídos na década de 30 do século passado, pelo Governo de Oliveira Salazar (decreto 18.819, de 4 de setembro de 1930)?
Esta perspetiva de antanho, que o atual ministério se prepara para executar, é manifestamente inaceitável, particularmente, por quem, como nós, defende a existência de uma Ordem de Professores no entendimento de que a docência não é uma mera atividade, mas sim uma verdadeira profissão (no sentido técnico do termo) que, como tal, tem saberes pedagógicos, didáticos, ético-deontológicos e outros que lhe são próprios e que jamais podem ser dispensados pela entidade reguladora da profissão docente; a qual, enquanto não existir a respetiva Ordem, continua a ser a tutela governamental.
Ademais, o tipo de medidas ad hoc que a tutela ora se propõe adotar cria situações de facto e de jure que, servindo para adiar e mascarar problemas de fundo, não os resolve verdadeiramente, pois não raro acarretam outro tipo de problemas que não tardarão a manifestar-se: uns já um pouco mais à frente e outros em prejuízo das futuras gerações.
Já um pouco mais à frente por força da lei geral do trabalho (e bem), esses “professores”, mesmo sem a componente pedagógico-didática no seu parco percurso académico, após três anos de serviço têm direito a fazer parte dos quadros, passando assim a serem “verdadeiros” professores.
Apraz-nos, contudo, elencar uma medida positiva que foi tomada no sentido de atrair para a profissão professores detentores da respetiva qualificação para a docência: a possibilidade que muito recentemente passou a ser conferida à generalidade dos estabelecimentos de ensino superior, desde que reúnam os respetivos requisitos académicos e institucionais, de realizarem cursos de profissionalização em serviço também à distância e na modalidade de e-learning.
Todavia, se o objetivo do Governo for aumentar a atratividade da carreira docente, nomeadamente para os jovens, importa melhorar o índice remuneratório de ingresso, devolver o respeito e consideração ao corpo docente dentro da sala de aula, na escola e pelo Estado, repondo a dinâmica de carreira de que sucessivos governos a têm amputado; flexibilizar a componente não letiva e de trabalho individual dos professores, evitando a sobrecarga com tarefas de tipo burocrático e plataformas digitais, de modo a que possam dedicar-se plenamente ao trabalho docente: aulas e respetiva preparação, correção e avaliação de trabalhos discentes, atualização e autoformação com liberdade de escolha dos respetivos percursos formativos como é típico das profissões de caráter ético e reflexivo.
Filipe do Paulo
Fonte: Público
1 comentário:
Infelizmente, mais uma vez, os governantes não valorizam a carreira docente. É pena ver uma profissão como a docência ser tão menosprezada.
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