Durante séculos, o conceito de profissão esteve confinado, exclusivamente, a três actividades humanas: sacerdócio, prática da medicina e do Direito (Navarro, “Ética profesional de los professores”, Desclée, 2010). No quadro de comunidades em que o religioso assumia preeminência, a vocação tomava um carácter de (divino) chamamento (a uma determinada missão no mundo) que, nas sociedades modernas, se transmutou em serviço, ou desempenho, competente à sociedade. Que tal não seja (indevidamente) traduzido por uma tecnocracia asséptica, a realizar de modo burocrático, é algo que importa sublinhar. É que, nos nossos dias, não raro se recorre, ainda (e bem, diríamos), à capacidade de sintonização com o outro, à dimensão empática – emocional e/ou cognitiva – para recrutamento de futuros profissionais (nomeadamente, na selecção de alunos, para faculdades de medicina, em países da nossa área civilizacional). Com efeito, o agir com cuidado e compaixão, olhar nos olhos o nosso interlocutor, a mobilização que possamos alcançar para nos focarmos em uma pessoa e/ou um objecto determinará a excelência – ou ausência dela – no domínio do nosso ofício (Goleman, “Foco”, Temas e Debates, 2014). De resto, ao nível do professorado, empatia deverá significar, suplementarmente, o reconhecimento do outro, do aluno, como pessoa, que merece (o meu) respeito, (a minha) atenção e escuta, mesmo que a relação, em sala de aula, não seja entre iguais, existindo um grau de verticalidade (relacional), em virtude de diferenças ao nível da missão e do papel de cada um (subjazendo, a tal desigualdade, um grau de conhecimento, formação académica, especialização, maturidade bem diversos), e em que a conduta/atitudes e valores, mormente de jovens em formação, não podem deixar de ser escrutinados (Navarro, 2010). Se um dos atributos das clássicas profissões consistia em não poderem ser objecto - as acções tributárias destas - de compra e venda, não menos incisivo é o (auto) questionamento que um professor – e, se quisermos, em particular o professor que contende, nos seus ensinamentos, com conteúdos acerca da ética – pode, a este propósito, empreender. Em realidade, uma das interrogações maiores que George Steiner introduz, ao longo de “As lições dos mestres” (Gradiva, 2011), prende-se com a remuneração da revelação - acometida ao Professor. Se ao Mestre - em especial, nesta equação, o das Humanidades -, foi dado o acesso a verdades últimas, a uma sabedoria acerca do mundo e das coisas, como ter prémio por as revelar, ou melhor, como nega-las a quem as não puder remunerar? "Como é possível pagar pela transmissão de sabedoria, de conhecimento, de doutrina ética ou de conceitos de lógica?" (Steiner, 2011, p.27). E, dado o salário ser uma realidade, então como calculá-lo, quando se fala de filosofia, ética, poesia?
"Que equivalência monetária ou conotação cambial pode ser estabelecida entre, por um lado, a sabedoria humana e a transmissão da verdade e, por outro, um honorário em dinheiro ou géneros? Se o Mestre é verdadeiramente um portador e comunicador de verdades engrandecedoras, um ser inspirado por uma visão e vocação nada comuns, como pode cobrar pelos seus serviços? Não existirá algo de simultaneamente aviltante e risível em toda a situação (...)?" (Ibidem).
Steiner opera, quanto ao prémio ao professor, uma clara distinção: a) "o pagamento de capacidades técnicas, do ensino de ofícios ou mesmo dos domínios mais elevados da tecnologia, na medida em que dizem respeito às ciências, é talvez justificável. Os saberes da carpintaria e da electrónica ou da computação quântica integram de modo palpável o domínio do «profissional»; mais do que isso, o tempo e as disciplinas operativas que envolvem podem ser entendidos, com razoabilidade, como mensuráveis e susceptíveis de recompensa monetária"; b) "mas como podemos pagar a Parménides pelo «Uno», a Sócrates pelas ideias sobre a virtude, a Kant pelo sintético a priori? Será que os metafísicos descontentes podem revoltar-se ou recusar os seus serviços àqueles que não têm possibilidades de pagar pelo seu magisterium?”.
De um ponto de vista operativo, a solução, proposta pelo autor, não deixa de remeter para uma lógica disruptiva, bem distante daquela com que nos confrontamos (habitualmente), mas que tem, outrossim, o mérito de nos inquietar: “uma sociedade orientada para o essencial poderia suprir as necessidades materiais dos professores. Foi uma disposição deste tipo que Sócrates, com soberana ironia, propôs aos seus acusadores. Uma tal sociedade pagaria apenas e precisamente aos medíocres, àqueles que convertem a vocação num negócio. Os Mestres receberiam apenas o mínimo necessário, à semelhança dos frades mendicantes" (Idem, 34).
Como a solução, uma vez mais, se afastasse do concreto quotidiano, Steiner trata de passar, se assim se poderá dizer, ao plano do apelo à responsabilidade individual (falando à consciência dos Mestres): "De modo mais realista, o Mestre, o pensador ou o indagador em geral deveriam ganhar a vida mediante uma qualquer actividade desligada da sua vocação. Boehme fazia sapatos, Espinosa polia lentes, Peirce - o mais importante filósofo que o Novo Mundo produziu até ao momento - escreveu, a partir da década de 1880, as suas obras imensas e espantosamente originais na mais extrema pobreza e isolamento, Kafka e Wallace Stevens trabalhavam em firmas de seguros, Sartre foi um dramaturgo, romancista e panflista de génio” (Ibidem).
Em matéria de riquezas, já Pico della Mirandolla alertara que não eram estas que mais relevavam no que à (sublimidade da) dignidade da pessoa humana concerne, mas, antes, no absoluto respeito e praxis conforme a esta, a procura, por parte de todos e de cada um, da causa das coisas, do sentido do Universo, dos desígnios de Deus (Ordine, “La utilidade de lo inútil”, Acantilado, 2013).
O bom professor, guardião e transmissor da cultura acumulada durante gerações, sensível perscrutador dos (mais recentes) contributos aduzidos pelas jovens gerações, profissional atualizadíssimo, imbuído da curiositas que é divinitas no humano (Ordine, 2013), que recusará o uso rotineiro do Manual e não improvisará na preparação das aulas, terá três características absolutamente determinantes: a) será um expert na matéria que lecciona; b) será um especialista na técnica didáctica relacionada com a sua especialidade (utilizará, pois, métodos didácticos que forneçam efectiva aprendizagem, sabendo motivar - verbo não sinónimo de divertir -, sendo a escola local de trabalho; é verdade que há um lado teatral na sala de aula, mas o professor deve estar consciente que a(s) vontade(s) para o teatro propriamente dito, ou para a entrada em uma sala de aula não são exactamente as mesmas; o investimento no recurso às novas tecnologias de informação e comunicação (TIC), com o móbil da eficácia na transmissão da cultura; c) os aspectos éticos farão parte do seu quotidiano. Ademais, dir-se-á que a formação que ministra obterá os resultados que a sociedade (e o próprio) dela esperam se for capaz de, simultaneamente, contribuir para forjar o (sólido) humano, o cidadão (consistente) e o futuro profissional (competente) que, na escola, vem completar a aprendizagem em família (Navarro, 2010). A escola não deve, aliás, limitar-se a reproduzir os ensinamentos bebidos em casa pelos mais jovens (há, nela, uma dimensão de inovação), ainda que não se fixe, necessariamente, em contrariá-los (em particular, a pauta axiológica nela recebida): será espaço intermédio entre a família e comunidade social na qual haverá um continuum entre instrução e educação (como propõe Savater, as lições, por exemplo, sobre o nazismo são não apenas conhecimento histórico que aos alunos se inculca, como, na mesma medida, e com aqueles, se transmitem, ou podem transmitir, valores e se forma o carácter).
À escola compete fornecer ferramentas, aos discentes, para que, por si próprios, possam pensar, evitando um moralismo que não seja propulsor de autonomia e responsabilidade (individuais; mais: a ética, enquanto ramo da filosofia moral, deve contribuir para explicar/fundamentar as injunções da moral), vida plena e com sentido.
Apesar de, no nosso tempo, muitos dos melhores talentos seguirem a via académica das ciências duras, e de, aliás, estas – as ciências duras - virem a encontrar novas imagens e renovar a nossa linguagem, a verdade é que sobre as possibilidades do humano nunca a neurociência ou a estatística serão capazes de dizer como Dostoievsky disse (Steiner, “Linguagem e Silêncio”, Gradiva, 2014). Há questões nas quais nenhum professor pode pretender-se neutro e a dignidade da pessoa humana e o respeito pelo próximo são, justamente, paradigmas do que, em nenhum momento, se poderá abdicar sem que, do mesmo passo, de uma sociedade civilizada se abdique também.
Fundamental, neste âmbito da autonomia de pensamento, por banda dos alunos, assinalar a advertência de José Azcue (“A escola onde se aprende”, Principia, 2012) sobre a escola portuguesa: o nosso sistema actual de educação penaliza as falhas e não incentiva os riscos. Os nossos alunos devem ser penalizados não por falharem, mas por não tentarem. Não ter medo de falhar é essencial. De acordo com este professor, “a escola precisa de ensinar o aluno a fazer as perguntas e não apenas a responder-lhes. Os melhores alunos que tive foram jovens que deram provas de uma grande curiosidade. Lembro-me deles pelas perguntas que faziam, não pelas respostas que davam às minhas perguntas” (Azcue, 2012, p.106)
O tópico do pluralismo é, em permanência, atendido por Emílio Navarro, em “Ética profissional dos professores”, propondo, neste cenário, que o professor não se deixe tentar pelo proselitismo, mas, com honestidade intelectual, exponha, se for caso disso, a cosmovisão em que se insere, deixando espaço de liberdade e espírito crítico dos formandos. O tópico da concorrência de culturas, suas tensões e o desaguar de momentos críticos em plena sala de aula tem sido alvo de permanentes revisitações – atente-se, eloquentemente, na abordagem cinematográfica de Laurent Cantet, no premiado filme “A turma” (2008), lá onde, subúrbio parisiense, o choque cultural faz sentir-se até ao paroxismo, exigindo do professor, outrora detentor de autoridade, que a consiga adquirir/ganhar num contexto particularmente difícil. Os conteúdos do labor acometido ao mestre amplificam-se:
“de transmissor competente de saberes científico-culturais, do professor se espera agora que se implique, motive, diagnostique, monitorize, dialogue e resolva problemas – na turma e na escola. No entanto, perante crianças e adolescentes com origens muito diversas, que desafiam saberes e a ordem escolar (adulta), a gestão quotidiana da turma revela-se o nó górdio do investimento – mas também do esgotamento («burn-out») – profissional do professor” (Almeida & Vieira, “Portugal de A a Z”, Expresso, 2013).
Uma das missões primordiais (e inelutável) no exercício do professorado é a avaliação. Ora, a diversidade de (tipo de) aferições, os diferentes talentos requeridos em avaliações o mais completas possíveis, a igualdade de oportunidades a cada um dos alunos, numa palavra, a equidade e a justiça devem ser escrupulosamente garantidos. É que a escola, em princípio, em vez do sexo, raça ou riqueza (como sucedeu em outras sociedades), outorgará o lugar das pessoas na hierarquia social (Navarro, 2010), pelo que o cuidado na avaliação deve ser extremo. O professor, pontual, não aceitará, ainda, prebendas de editoras que visarão, de algum modo, comprometer/condicionar escolhas de (futuros) manuais. E principiará cada ano lectivo definindo, de modo preciso, as regras que enformarão o relacionamento e hábitos de trabalho (com os alunos), sendo inflexível, nessa ocasião, com qualquer tergiversação nos predicados enunciados.
Com crianças em cada vez menor número dada a baixa natalidade, no nosso espaço geográfico e cultural, o modo como estas são vistas – bem raríssimo – muda, ao longo das décadas, na nossa sociedade. O papel que lhes é atribuído, no interior do lar (na escola, na sociedade), as hierarquias rígidas são subtraídas a um conhecimento, desde tenra idade, por exemplo, e se possibilitado esse adestramento, das cada vez mais necessárias TIC e da cidadania alargada que, também, permitem (e que por vezes, as crianças ensinam aos pais/encarregados de educação e, das informações fragmentárias que adquirem, testam, igualmente o professor). Nada dispensará, porém, a capacidade de proceder ao distinguo, bem como a faculdade do professor em sustentar o estudante a um patamar onde, autónomo, firme, possa partir em busca do conhecimento (verdade), do bem e do belo (o simples saber é triste, constatava Santo Agostinho ao reconhecer a mesma raiz de palavras como Scientia e tristitia). A identidade dos mais novos apresenta-se cada vez mais ligada à escola, dada a precocidade e longevidade dos percursos escolares do nosso tempo (Almeida & Vieira, “Portugal social de A a Z”, Expresso, 2013).
Este que numa sociedade fragmentada, com os laços liquefeitos, torna o afecto e a ternura tão temidas – máxime, ali onde o valor de confiança no outro se vislumbra muito diminuído, como sucede em Portugal – quanto necessárias e que, inexistentes, podem levar ao pior dos efeitos (a imagem da adolescente que se suicida, quando o professor lhe nega o abraço, com medo de ser mal compreendido pelos outros docentes e pelos discentes, quando esta tanto necessitava daquele ponto de vinculação e conforto, face a outros problemas existenciais, em “O substituto” (2011), filme do realizador Tony Kaye, continua a atravessar-nos; se, em “O clube dos poetas mortos” (1989), de Peter Weir, a sala era assaltada pelo professor idealista, em busca de contornar os códigos de uma sociedade e escola ainda muito hierarquizadas e, portanto, a dimensão de sonho ainda se encontrava presente, a obra de Tony Kaye transporta-nos já para o seio de uma sociedade profundamente cínica e que, para utilizar uma das felizes expressões do Papa Francisco, já não sabe chorar).
Voz encantatória e magnética – irreproduzíveis, em texto, as aulas repletas de alunos, de Heidegger, porque o modo como eram ditas fazia parte do conteúdo mesmo destas; ética e estética umbilicalmente ligadas, aqui, diz Steiner -, cadência de passeio de mestres antigos, valorização da memória. Recordando Bacon – ‘ler torna o homem completo, a conversa fá-lo expedito, e a escrita, preciso’ -, o doutor Johnson (“Páginas escolhidas”, Quetzal, 2014) deixou-nos o derradeiro inciso: “é sempre razoável ter a PERFEIÇÃO em vista, de modo que possamos avançar para ela, embora sabendo que nunca a poderemos alcançar” (p.104).
Fonte: I online por indicação de Livresco
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