terça-feira, 4 de maio de 2021

Natureza das funções do docente de educação especial

A questão relacionada com as funções do docente de educação especial tem sido levantada com alguma frequência. Neste texto, procuro responder, de forma enquadrada, a esta temática, mas, também, numa perspetiva pessoal decorrente do ordenamento atual.

O Despacho conjunto n.º 198/99, publicado em 3 de março, aprova o referencial de perfis de formação especializada dos docentes, incluindo a de educação especial. A formação especializada em educação especial visa qualificar para o exercício das funções de apoio, de acompanhamento e de integração socioeducativa de indivíduos com necessidades educativas especiais. Para tal, define um conjunto de competências a desenvolver: análise crítica; intervenção; formação, supervisão e avaliação; consultoria.

Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 27/2006, de 10 de fevereiro, cria os grupos de educação especial, atribuindo-lhes uma caracterização funcional:

- Grupo 910: apoio a crianças e jovens com graves problemas cognitivos, com graves problemas motores, com graves perturbações da personalidade ou da conduta, com multideficiência e para o apoio em intervenção precoce na infância;

- Grupo 920: apoio a crianças e jovens com surdez moderada, severa ou profunda, com graves problemas de comunicação, linguagem ou fala;

- Grupo 930: apoio educativo a crianças e jovens com cegueira ou baixa visão.

Nesta descrição funcional, destaca-se que a natureza da docência é o apoio aos alunos. Não são focadas, nesta descrição, as valências de supervisão, formação, consultoria. Este paradigma continua nos dias de hoje, tal como consta da legislação e dos sucessivos avisos de abertura dos concursos docentes.

Entretanto, é publicado o atual Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 116/2019, de 13 de setembro, que estabelece o regime jurídico da educação inclusiva. Importa questionar, neste contexto, quem são os responsáveis pela definição das medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão; quem são os responsáveis pela concretização das medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão; qual o papel do docente de educação especial neste contexto.

O diploma não consagra explicitamente as funções do docente de educação especial, levando este limbo a uma aparente descaracterização das suas competências.

Sobre esta temática, o diploma consagra que as medidas são desenvolvidas tendo em conta os recursos e os serviços de apoio ao funcionamento da escola, numa lógica de trabalho colaborativo e de corresponsabilização com os docentes de educação especial, em função das especificidades dos alunos. Os docentes de educação especial são, assim, considerados recursos específicos de apoio à aprendizagem e à inclusão. Como tal, os docentes de educação especial, no âmbito da sua especialidade, apoiam, de modo colaborativo e numa lógica de corresponsabilização, os demais docentes do aluno na definição de estratégias de diferenciação pedagógica, no reforço das aprendizagens e na identificação de múltiplos meios de motivação, representação e expressão. Aparentemente, e contrariamente ao enquadramento analisado anteriormente sobre a criação dos grupos de recrutamento, destaca-se neste caso o papel de apoio aos demais docentes.

A componente do docente de educação especial, à semelhança dos restantes docentes, reparte-se por três níveis: componente letiva (22 horas, sem incluir as horas de redução previstas no artigo 79.º do Estatuto da Carreira Docente); componente não letiva de trabalho a nível de escola (até 3 horas); componente não letiva de trabalho individual (até perfazer as 35 horas).

Levanta-se, nesta fase, a questão sobre quais são as competências, as funções da componente letiva do docente de educação especial. Sobre isto, partilho a perspetiva pessoal, enquadrada, quer do ponto de vista normativo, quer do funcional, pensando sempre no superior interesse dos alunos, enquanto forma de promover a sua aprendizagem. A componente letiva depende das medidas de apoio à aprendizagem e à inclusão: medidas universais; medidas seletivas; medidas adicionais. Por outro lado, depende da natureza das medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão.

Na lógica da natureza das medidas, apresento três dimensões: natureza específica, incorporando a componente especializada adstrita unicamente ao docente de educação especial; natureza mista, envolvendo a componente que pode ser desenvolvida por docente de educação especial, como componente letiva, ou por outro docente com perfil adequado; natureza transversal, correspondendo à componente que pode ser desenvolvida por qualquer docente, com o suporte ao nível da consultoria por parte do docente de educação especial.

A aplicação das medidas universais é realizada pelo docente titular do grupo/turma e, sempre que necessário, em parceria com o docente de educação especial, enquanto dinamizador, articulador e especialista em diferenciação dos meios e materiais de aprendizagem e de avaliação.

Específica

Mista

Transversal

 

- Promoção do comportamento pró-social

- Intervenção com foco académico ou comportamental em pequenos grupos

- Apoio tutorial preventivo e temporário

- Diferenciação pedagógica

- Acomodações curriculares

- Enriquecimento curricular

Figura 1 - Natureza das medidas universais

A promoção do comportamento pró-social e o apoio tutorial preventivo e temporário podem ser desenvolvidos pelo docente de educação especial, tendo em consideração a especificidade e a adequabilidade desses apoios. A Intervenção com foco académico ou comportamental em pequenos grupos pode centrar-se no desenvolvimento de atitudes e capacidades (concentração, atenção, reflexão…) indispensáveis ao processo de aprendizagem.

A aplicação das medidas seletivas é realizada pelo docente titular do grupo/turma e, enquanto dinamizador, articulador e especialista em diferenciação dos meios e materiais de aprendizagem e de avaliação, sempre que necessário, em parceria com o docente de educação especial. 

Específica

Mista

Transversal

 

- Percursos curriculares diferenciados

- Apoio psicopedagógico

- Apoio tutorial

- Adaptações curriculares não significativas

- Antecipação e o reforço das aprendizagens

Figura 2 - Natureza das medidas seletivas

As medidas seletivas são, assim, operacionalizadas com os recursos materiais e humanos disponíveis na escola, incluindo os docentes de educação especial. O apoio psicopedagógico pode constituir componente letiva do docente de educação especial, sobretudo o apoio de natureza pedagógico, dando, como exemplos, a intervenção no âmbito da dislexia e coadjuvação em sala de aula.

A aplicação das medidas adicionais que requerem a intervenção de recursos especializados deve convocar a intervenção do docente de educação especial enquanto dinamizador, articulador e especialista em diferenciação dos meios e materiais de aprendizagem, sendo, preferencialmente, implementadas em contexto de sala de aula. 

Específica

Mista

Transversal

- Desenvolvimento de metodologias e estratégias de ensino estruturado

- Desenvolvimento de competências de autonomia pessoal e social

- Adaptações curriculares significativas

- Plano individual de transição

- Frequência do ano de escolaridade por disciplinas

Figura 3 - Natureza das medidas adicionais

As adaptações curriculares significativas podem envolver outros docentes de acordo com a especificidade das aprendizagens substitutivas a incluir no programa educativo do aluno. Como exemplo ilustrativo, se as adaptações curriculares significativas envolverem aprendizagens substitutivas de disciplinas específicas, podem ser desenvolvidas por docente do respetivo grupo de recrutamento.

A componente letiva do docente de educação especial contempla, ainda, as áreas curriculares específicas, como treino de visão, sistema braille, orientação e mobilidade, tecnologias específicas de informação e comunicação e atividades da vida diária.

Como se constata, a componente letiva do docente de educação especial é flexível. No entanto, é necessária uma normatização que sustente, fundamente e determine a atribuição dessa componente letiva. Deste modo, a intervenção do docente de educação especial tem de constar de documentos estruturantes (relatório técnico-pedagógico; programa educativo individual; plano individual de transição; ata de conselho de docentes ou turma; regulamento interno do Centro de Apoio à Aprendizagem, …), com as devidas especificidades, designadamente a natureza da intervenção, o contexto da intervenção, o número de tempos.

Existe, ainda, um conjunto de atividades que, por não terem qualquer grupo de recrutamento associado, podem ser atribuídas ao docente de educação especial, à semelhança dos restantes docentes, considerando-se para tal o perfil e a adequação à função. Como exemplo, surgem a lecionação de Cidadania e Desenvolvimento, o Apoio Tutorial Específico.

Outras atividades podem ser englobadas, recorrendo-se, para tal, à gestão do crédito horário da escola. Dou, como exemplo, a participação na Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva.

A componente não letiva do docente de educação especial pode englobar um leque diversificado de situações, como, por exemplo, participação na equipa multidisciplinar, apoio aos demais docentes, reuniões de natureza pedagógica, assessoria técnico-pedagógica, elaboração de materiais específicos, integração em equipas de trabalho.

Em suma, deve ter-se em consideração a centralidade no aluno e a promoção das suas aprendizagens. A componente letiva e não letiva deve ser determinada com flexibilidade e adequação, considerando a personalização, a especificidade, os recursos e as circunstâncias.

4 comentários:

Anónimo disse...

Bom dia João (permita-me que o trate por João).
Tive presente na sua apresentação na formação promovida pela PROANDEE, e não posso deixar de dizer que discordo com alguns pontos relativamente à sua visão quanto às funções do PEE, nomeadamente a pluralidade de funções motivada pela assunção de "recursos da escola". com a possibilidade de lecionar certas áreas (como cidadania ou apoio tutorial especifico), considero isso o esvaziar da nossa especificidade profissional, com evidentes riscos de nos tornarmos "meros professores de apoio" e acontecer o que acontece frequentemente aos professores de apoio educativo, ser um "recurso educativo da escola" que serve para substituir colegas entre outras tarefas.
A minha interpretação da atual legislação, remete o PEE para as funções de consultadoria (aí sim um recurso da escola)com a sua intervenção direta vinculada aos alunos com medidas adicionais e (alguns) com medidas seletivas (antecipação e reforço das aprendizagens; apoio psicopedagógico). Continuando a intervenção do PEE a incidir nas áreas deficitárias causais, no desenvolvimento de competências específicas.

João Adelino Santos disse...

Caro colega
O docente de educação especial tem funções específicas, no âmbito da sua formação especializada, e são essas funções que devem merecer centralidade no processo de atribuição de serviço docente. Para apuramento de vagas, é este o critério determinante.
Este processo de distribuição de serviço docente acontece com os docentes dos restantes grupos de recrutamento. O docente de Físico-Química leciona estas disciplinas.
No entanto, existe um conjunto de "atividades de componente letiva" ("neutras") que não estão associadas a qualquer grupo de recrutamento (Cidadania e Desenvolvimento; Apoio Tutorial Específico; ...). Estas atividades são, normalmente, atribuídas a docentes em função da formação, do perfil, da disponibilidade de recursos humanos.
O docente de educação especial não tem um estatuto próprio. Regula-se pelo Estatuto da Carreira Docente. Neste contexto, na minha opinião, não pode ser discriminado face aos restantes colegas. É nesta perspetiva que refiro que há atividades "neutras" que podem também ser desenvolvidas pelos docentes de educação especial, dentro de determinadas circunstâncias. Não é priorizá-las para o docente de educação especial. Afinal, somos todos docentes!

Anónimo disse...

Penso que seria uma "discriminação positiva".
Compreendo do ponto de vista estatutário e de gestão de recursos humanos, mas tendo em conta a minha experiência profissional e pessoal considero algo arriscado, que poderá dar azo a muitos atropelos relativamente aos PEE.
Mas como afirma, são meras opiniões pessoais. Ainda que assunto necessite de uma merecida clareação, talvez não neste momento mas no futuro.

Unknown disse...

Somos docentes com uma formação especializada, mas com diferentes áreas de formação inicial. No meu caso pessoal, com uma qualificação profissional inicial para o GR100 de como é que se compreende que me seja distribuído serviço de apoio tutorial específico a alunos de 2º e 3º ciclos, ou até de nível secundário, por exemplo??