segunda-feira, 10 de maio de 2021

O lúpus não tem de ser “uma espada acima da cabeça”, mesmo durante a pandemia

Albertina Rei, Ana Filipa Abelha e Mónica Rebelo são de pontos diferentes do país, possivelmente nunca se cruzaram, mas têm algo em comum: são três dos cerca de 10.000 doentes de lúpus em Portugal. Esta segunda-feira assinala-se o Dia Mundial do Lúpus, uma doença auto-imune que afecta principalmente mulheres em idade fértil. Com a pandemia de covid-19, estes doentes crónicos passaram a ter teleconsultas, e os tratamentos com imunossupressores (usados para controlar e regularizar o sistema imunitário) despertaram, em alguns casos, um receio maior face à possibilidade de infecção com o novo coronavírus, para além de dúvidas quanto à vacinação. O PÚBLICO procurou saber como as vidas destas três mulheres mudaram com o lúpus e como a doença as fez encarar a pandemia.

Em Abril, a lista de prioritários na vacinação contra a covid-19 mudou e passou a incluir doentes em imunossupressão. Albertina Rei é uma das doentes já vacinadas com a primeira dose. “Fui vacinada há uma semana, as minhas médicas não puseram entraves à vacinação. Aconselharam-me, aliás, a que fosse vacinada e não tive nenhuma reacção secundária”, explica a cozinheira do Restaurante O Artur, em Carviçais, concelho de Torre de Moncorvo. “Eu quero acreditar que assim posso estar mais descansada”, diz.

Aos 43 anos, Albertina toma medicação diária com imunossupressores e cortisona (5mg), além de outros medicamentos, desde há nove anos — quando chegou o diagnóstico positivo de lúpus. A doença não tem cura e por isso o trabalho feito com a medicação é de controlo e manutenção, mas Albertina ainda não entrou em remissão e, por isso, os picos são frequentes.

“Há dias em que tenho que parar porque não consigo estar de pé. Acontece muitas vezes”, conta. “Por exemplo, fazer uma viagem daqui ao Porto [mais de 300 quilómetros, perto de 2h30] e voltar faz muita diferença, ou uma coisa tão comum num restaurante que é pegar numa caixa de cerveja, ou estar muito tempo de pé no mesmo sítio, faz-me ficar muito cansada, com dores musculares”, explica.

O facto de ser mãe de três filhos, duas delas ainda menores de 18 anos, fez com que a reacção ao diagnóstico de lúpus fosse “muito má”. Corria o ano de 2012 quando o médico que a acompanhava no Hospital de Santo António, no Porto, lhe disse que a doença “pode ser fatal em alguns casos”, recorda. Ao desconhecimento juntou-se o exemplo de uma prima de Albertina que acabou por morrer devido a uma doença auto-imune, 15 dias depois do diagnóstico. “Não tinha ideia do que era uma doença auto-imune, era tudo muito novo. Fiquei um ano à deriva”, conta.

Desde então, Albertina aprendeu que consegue viver com a patologia e a “ter esperança e viver um dia de cada vez”. A manutenção de um tratamento diário, o acompanhamento médico, o cuidado com a alimentação (é necessário evitar substâncias com efeitos inflamatórios como o glúten, os hidratos, o sódio ou a lactose) e o apoio dos que a rodeiam são essenciais para manter a doença controlada. Essa aprendizagem diária, e todos os cuidados que foi desenvolvendo ao longo dos anos para se proteger de outras infecções que a pudessem afectar, fizeram com que não ficasse mais ansiosa com a chegada de um novo vírus, há mais de um ano.

“Vivi o primeiro confinamento parada no tempo”

Ao contrário de Albertina, Ana Filipa Abelha ainda não foi vacinada e já esteve, aliás, infectada com covid-19. Até esse momento viveu “em pânico”, confidencia ao PÚBLICO. Os episódios depressivos e de ansiedade foram uma constante ao longo dos últimos seis anos e a chegada da pandemia despertou-lhe receios antigos. “Vivi o primeiro confinamento [Março a Maio de 2020] parada no tempo”, refere.

Ao facto de fazer imunossupressão diária juntou-se o medo de isso poder significar uma maior predisposição para a infecção com o novo coronavírus. Como resposta, Ana isolou-se em casa, mudou comportamentos e formas de estar com os outros, que passaram a ser virtuais, à semelhança dos demais, durante o último ano. Contudo, todos esses cuidados não impediram que tivesse um teste positivo ao novo coronavírus, confirmado em Dezembro de 2020. “Viver com lúpus e com a covid-19 é viver em ainda mais alerta, mais preocupada comigo e com o próximo”, diz.

Ana Filipa ainda não recuperou totalmente da covid-19. “Durante um mês continuei a ter dores de cabeça brutais. Acordava a meio da noite sem fôlego. Ainda não tenho o paladar e o cheiro a 100%, tenho dores nos ossos que nunca tive antes. Fazer uma caminhada, parece que estive a fazer um treino intensivo de três horas no ginásio”, exemplifica a artista plástica e professora de Teatro do Porto. Por já ter sido infectada, ainda não foi vacinada contra a covid-19 e não tem ideia de quando isso irá acontecer. Para já, não cria expectativas relativamente à vacinação.

As dores diárias são a realidade de Ana Filipa e de mais 10.000 portugueses. “Viver em remissão não é viver sem dor. Neste momento tenho dores, não aparento e faço por não aparentar porque acabamos por nos cansar das queixas”, lamenta, alertando para o facto de existir ainda um desconhecimento grande sobre o lúpus. “Muitas pessoas não percebem que eu vivo com uma doença crónica, que tenho picos”, conclui.

A pandemia fê-la desistir de treinar num ginásio, por não se sentir em segurança, apesar de a prática a beneficiar tanto física como psicologicamente. “Gostava muito de voltar ao ginásio, não sei quando é que isso vai acontecer. Neste momento, estou focada na alimentação porque, quanto menos peso tiver, menos são as inflamações. Claro que também não podemos entrar num estado de loucura, temos, sim, que ser saudáveis”, diz.

Em 16 anos de lúpus, só há seis meses é que Mónica conseguiu entrar em remissão

Aos 26 anos, Mónica Rebelo teve uma flebotrombose e, à data, estava ainda longe de imaginar que três anos mais tarde viria a receber um diagnóstico positivo de lúpus. Agora com 45 anos, Mónica só conseguiu ver a doença em remissão há seis meses. “Felizmente, e por incrível que pareça, aconteceu num ano tão atípico como o de 2020, neste percurso já longo”, conta Mónica. O facto de estar reformada por invalidez, há dez anos, dá-lhe a possibilidade de estar em casa, na Quinta do Conde, em Sesimbra, o que vê com bons olhos no contexto de pandemia.

“Tenho a sorte, ou azar, de poder estar mais resguardada em casa e acabo por estar protegida por não ter que ir trabalhar, aí correria mais riscos por estar em contacto com mais pessoas”, justifica. Apesar disso, a pandemia de covid-19 não alterou de uma forma profunda o seu quotidiano, uma vez que já antes da pandemia mantinha os cuidados básicos de higiene, como a desinfecção e lavagem frequente das mãos. “Precisamente por tomar imunossupressores, quando ia ao hospital já tinha o cuidado de levar máscara e usar desinfectante”, exemplifica, acrescentando ainda que chegou a ser contagiada com a gripe A por desconhecimento, por ter o sistema imunitário desregulado e não ter esses cuidados de protecção individual.

De há um ano para cá, a principal mudança no quotidiano de Mónica foi a alteração das consultas presenciais para teleconsultas, durante parte de 2020, como aconteceu com outros doentes crónicos. Neste período pandémico, nunca suspendeu os tratamentos e continuou, aliás, a dirigir-se ao hospital para fazer tratamento biológico. Todos os dias, Mónica toma 28 comprimidos: cortisona, imunossupressores, protectores gástricos, entre outros. “Tenho até uma lista de medicação na minha carteira para não me esquecer do que é que tomo. É tanta coisa...”

A juntar a toda essa medicação estará, num futuro próximo, um outro fármaco: a vacina contra a covid-19. Mónica não tem dúvidas de que quer receber a vacina, assim que tiver essa oportunidade. “Os médicos aconselharam-me a ser vacinada, mas também me foi dito que, apesar de vacinada, não posso considerar que tenho imunidade como qualquer outra pessoa saudável, uma vez que faço imunossupressão e, por isso, o efeito pode não ser tão garantido”, explica.

“A vacina não faz mal, nem à doença nem à pessoa que a toma”

Também a médica e professora Helena Canhão, presidente da Sociedade Portuguesa de Reumatologia, ressalva esse aspecto. “O que pode acontecer é que, como estão imunodeprimidos e como têm doenças que alteram o sistema imunitário, ao receberem a vacina podem não ter uma resposta tão boa, em termos de defesas posteriores, como quem é saudável e recebe a vacina”, expõe, assegurando, contudo, que “a vacina não faz mal, nem à doença nem à pessoa que a toma”. A reumatologista aplaude ainda a decisão das autoridades de saúde em terem incluído os pacientes imunodeprimidos nas prioridades de vacinação, o que considera “fundamental”.

Helena Canhão reconhece também o medo dos doentes em continuarem a imunossupressão. “Isto foi um problema. Por um lado, como muitos doentes estavam a tomar imunossupressores e sabem que isso lhes está a ser dado para acalmar o sistema imunitário, que está hiper-reactivo, muitos doentes tinham medo da infecção, manifestaram o receio de manter a terapêutica e queriam pará-la”, explica. Porém, como diz, “pior do que fazer o tratamento é pará-lo”, o que leva a que o sistema imunitário fique ainda mais descontrolado.

“O lúpus não é uma espada acima da cabeça”, afirma a médica, que deixa uma mensagem de esperança a todos os doentes, destacando a importância de não adiar o diagnóstico. “A doença é perfeitamente controlável. Não vivam com ansiedade porque há sempre histórias de lúpus graves, mas também há lúpus que na verdade são um ‘lupinho’”, remata.

Fonte: Público

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