sábado, 1 de maio de 2021

Há uma nova agência que se foca no talento de trabalhadores com deficiência

Nas candidaturas de emprego, Cátia Correia, 26 anos, costumava deparar-se com um dilema: dizer ou não que era portadora de deficiência? “Se pusesse, não me chamavam; se não pusesse, depois chegava lá e tinha reacções”, conta, numa sala na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa onde faz parte de um novo projecto, o Valor T — Talento e Transformação.

Lançado neste 1.º de Maio, Dia do Trabalhador, este projecto irá funcionar como uma agência de emprego para pessoas com deficiência. Cátia tem um papel importante nele. Faz a caracterização do território, identifica as associações e as empresas parceiras, e está ainda ligada à construção da plataforma.

Com uma paralisia cerebral que lhe provoca espasmos nas mãos, Cátia Correia conta situações desse género com que se confrontou ao longo da sua vida profissional: do questionamento da sua capacidade para lidar com público às aptidões para trabalhar com crianças, surgiam várias dúvidas. Este é, de resto, um sentimento que outras pessoas com deficiência partilham, conta. “Havia e há esse estigma, esse medo.”

Por isso acredita que um projecto como o Valor T pode “criar oportunidades”. Até porque “há um pré-aviso que vai desmistificar alguns preconceitos, alguns medos” de parte a parte.

Se há preconceito e desconhecimento de empregadores, também há medo entre algumas pessoas com deficiência, diz. “O contacto com o mundo do trabalho é desprotegido”, porque “não temos a família para apoiar quedas, temos situações novas”, analisa. “Chegar a uma empresa e dizer ‘tenho deficiência’ se calhar leva a uma rejeição que na família nunca houve.”

Licenciada em Serviço Social desde 2017, Cátia Correia começou a trabalhar na Santa Casa da Misericórdia em 2019, onde fez parte de um projecto de intervenção, Radar, como entrevistadora para uma espécie de recenseamento da população idosa.

O seu percurso escolar foi regular, com algumas adaptações — por exemplo, a escrita “tinha de ser feita no computador”. A timidez que descreve em si não a impediu, porém, de ir viver para o Brasil, onde foi fazer um estágio durante quatro meses com um grupo de amigos.

Dar espaço para mostrar o talento

Mas, afinal, como funciona o Valor T? Faz o chamado matching de trabalhadores com deficiência e as empresas para onde irão trabalhar tendo em conta as necessidades destas para “tornar o mais normatizado este processo”, explica Vanda Nunes, a coordenadora de uma equipa de nove pessoas, entre elas Cátia Correia. “Achei que era importante ter pessoas que possam conhecer esta realidade”, comenta, “com toda a competência que têm”, como a Cátia.

Os parceiros institucionais do projecto são, além da Santa Casa, o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) e o Instituto Nacional para a Reabilitação (INR), e o trabalho faz-se em articulação com a Confederação Industrial Portuguesa (CIP). Esta “é uma resposta que procura salientar a capacidade e talento das pessoas e não focar-se na incapacidade e deficiência”, afirma a responsável.

Por outro lado, este projecto tem em conta a necessidade de acompanhamento no processo de integração, tanto das empresas como dos candidatos. “Há um medo que envolve os candidatos e as empresas”, afirma, por isso esse acompanhamento é importante. Medo da parte das empresas de empregarem pessoas com deficiência, medo dos candidatos que “lutam muito pela oportunidade”, mas que se podem sentir desprotegidos, avança.

O Valor T assume-se como um projecto de “discriminação positiva”: o processo de recrutamento e selecção tem especificidades que um processo usual não terá, contextualiza Vanda Nunes.

Neste momento há 35 associações e federações parceiras. Quanto às empresas, a parceria é com algumas que já têm desenvolvido trabalho nesta área — grandes grupos como o El Corte Inglés, Banco Santander, Altice, Jerónimo Martins, Nova Base, Sonae (...). A ideia é que o número se alargue.

Na própria Santa Casa, onde “trabalham pessoas com deficiência há muito tempo”, o objectivo é que o Valor T possa “aperfeiçoar a estratégia de integração e contratação”, refere. O objectivo do programa é “gerar equidade na oportunidade”: depois, “a pessoa entra no mercado de trabalho e aí tem direitos e deveres como outros colegas”, afirma. A questão é que “nas empresas há um trabalho a fazer para as pessoas terem espaço para se apresentarem”.

A Jerónimo Martins, por exemplo, tem um programa em Portugal desde 2015, que se chama Incluir, com que promove a empregabilidade de grupos em situação de desvantagem no acesso ao mercado de trabalho e em que se incluem as pessoas com deficiência. Já proporcionou 500 oportunidades de formação e contratação.

Segundo a responsável corporativa de relações laborais, Susana Correia de Campos, a empresa tem investido na criação de parcerias com organizações especializadas em vários tipos de deficiência para o desenvolvimento de boas práticas nos processos de recrutamento, formação e contratação. “O modelo de tutoria tem-se revelado muito eficaz na nossa organização e tem o duplo benefício de facilitar a integração e, também, de promover o espírito de equipa e a solidariedade. A plataforma Valor T enquadra-se no âmbito da missão do nosso programa Incluir”, afirma por email.

Espera que através do Valor T recebam candidatos com "a motivação e o perfil necessários” para integrarem as equipas.

Trabalho digno e regular

Para o provedor da Santa Casa, Edmundo Martinho, era “útil avançar” com um “projecto que se centrasse exclusivamente neste objectivo”, “suportar e apoiar as pessoas na entrada ou no regresso a um percurso de trabalho digno e regular”. “Partimos do princípio de que todos os cidadãos têm direito a construir carreiras profissionais”, e as pessoas com deficiência não são excepção, comenta ao telefone (...).

A escolha do dia 1 de Maio para o lançamento do projecto “não é um acaso”: “Estamos a falar de pessoas que têm capacidades e qualificações mas que, por causa da sua condição física ou intelectual, encontram muitos obstáculos. Temos a ambição de contribuir para a quebra dessas barreiras.”

Porém, Edmundo Martinho sublinha que o projecto não quer olhar o emprego das pessoas com deficiência como “assistencial mas como seguro, digno”. Com um orçamento de um milhão de euros para ser usado sobretudo na equipa, o programa não tem qualquer contrapartida para as empresas.

Também não nasce por causa da lei das quotas, embora o provedor reconheça que estas possam ser um incentivo para as empresas aderirem — a lei torna obrigatória às médias e grandes empresas a contratação de pessoas com deficiência (as empresas com um número igual ou superior a 75 empregados devem ter 1% destes trabalhadores, percentagem que passa para 2% no caso das grandes empresas).

Dados preocupantes

Ainda sem informação sobre a forma como a lei das quotas está a ser aplicada, Paula Campos Pinto, coordenadora do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos (ODDH), refere que os relatórios publicados até Junho de 2020 mostravam “dados preocupantes” no panorama do emprego de pessoas com deficiência. O desemprego estava a diminuir desde 2016, mas no primeiro semestre do ano passado aumentou. Segundo o IEFP, estavam registados 12.027 desempregados, em Junho de 2020 eram 13.270. “A expectativa é que o desemprego aumente e precisamos de pensar em estratégias”, afirma.

Além dos obstáculos como acessibilidades e transportes, quem tem deficiência esbarra com preconceitos e ignorância, por isso “há que fazer um trabalho de educação e sensibilização”, defende a perita. Lembra que há medidas e apoios para as empresas mas que são pouco usados, o mesmo se passando com o acompanhamento personalizado que facilita a inclusão, algo que está previsto na lei através dos contratos de emprego apoiado e ao qual as empresas podem recorrer. Congratula-se com a existência deste tipo de agência, embora defenda que as pessoas com deficiência deveriam ser integradas numa estrutura geral como o IEFP, em vez de entrarem “por uma porta ao lado”: “Seria mais interessante se o esforço fosse dirigido a alargar a porta.”

Cátia Correia espera que o projecto Valor T seja “uma alavanca”, mas também que represente “mudar a mentalidade de pessoas com deficiência”: “É preciso arriscar e ir sem medos”, comenta.

O projecto é lançado este sábado às 16h na sala de extracções da Santa Casa da Misericórdia, em Lisboa, numa cerimónia em que estará o Presidente da República e o presidente da Confederação Empresarial de Portugal.

Fonte: Público

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