sábado, 29 de maio de 2021

Homem cego há 40 anos recuperou visão parcial com nova terapia

Uma passadeira na rua, ou, para sermos mais precisos, a percepção de “riscas brancas numa rua”. Este terá sido um dos momentos-chave da história que é contada hoje num artigo publicado na revista Nature Medicine. Um homem de 58 anos de idade, francês, estava cego há quase 40 anos depois de lhe ter sido diagnosticada uma doença rara neurodegenerativa chamada “retinose pigmentosa” que destrói as células da retina que recebem os sinais de luz. O doente foi submetido a uma inovadora terapia de optogenética. E o resultado, que envolve a percepção de traços brancos numa rua, uma simples passadeira, foi um dos claros sinais do êxito.

Este é o primeiro caso documentado e publicado numa revista científica com revisão por pares de uma recuperação funcional de um doente com uma doença neurodegenerativa que foi submetido a uma nova terapia optogenética que usou células geneticamente modificadas para responder aos estímulos dos impulsos de luz.

O tratamento simples e pouco invasivo envolveu uma injecção no olho (algo que por mais estranho que pareça é um procedimento muito comum na oftalmologia) que serviu para promover a reactivação das células destruídas na retina, onde encontramos os foto-receptores que captam os sinais de luz que depois são enviados para o cérebro. Depois, foi necessário esperar alguns meses para que a proteína (induzida pela injecção) fosse produzida até atingir níveis relativamente elevados. A seguir, a equipa internacional de cientistas recorreu a uns óculos especiais que ajudaram a estimular o olho intervencionado e “ensinaram” o cérebro deste doente cego há quase 40 anos a voltar a ver. Horas e horas de treino num laboratório em que se imitavam situações do dia-a-dia como numa peça de teatro, com uma agenda condicionada pelas restrições de uma pandemia lá fora.

O artigo agora publicado é acompanhado por dois vídeos de curta duração. É ali que vemos um homem de cabelos grisalhos e cara desfocada sentado à frente de uma mesa branca. Sabemos apenas que vive na região da Bretanha. Seguem-se uma série de exercícios em que vemos que são colocados objectos em cima da mesa e ouvimos o doente francês de 58 anos a dizer o que vê e que não vê. Os testes são feitos sem óculos e com óculos, com o olho intervencionado tapado por uma pala e descoberto. Não estamos directamente envolvidos naquelas experiências, mas é inevitável ficar ansioso na expectativa de o ouvirmos dizer que sim, que está ali um objecto em cima da mesa e onde ele está e, por fim, vê-lo estender a mão para lhe tocar. Até como mero espectadores, é impossível não ficarmos entusiasmados com as respostas certas que dá.

Recuperar foto-receptores

A retinose pigmentosa é uma doença neurodegenerativa ocular que decompõe as células da retina com foto-receptores sensíveis à luz e pode levar à cegueira completa. Actualmente, não existe qualquer forma de evitar este desfecho nos doentes. José Alain Sahel, um reconhecido cientista na Universidade de Sorbonne (em França) e na Universidade de Pittsburgh (nos EUA) e que dirigiu o Instituto da Visão, em Paris, é um dos autores deste trabalho realizado com Botond Roska, da Universidade de Basileia, na Suíça, entre outros investigadores que também participaram neste trabalho. Os dois especialistas participaram numa conferência de imprensa promovida pela Nature na semana passada para explicar o projecto e as suas implicações e também para responder às dúvidas dos jornalistas. “Esta é a abordagem mais simples, mais directa ao assunto e mais lógica da aplicação da optogenética”, disseram.

Os autores descreveram os resultados iniciais do ensaio clínico em curso que comprovou a segurança do procedimento e das doses usadas na injecção com um vector viral (utilizado para facilitar a terapia genética) que levou até à retina de um olho do doente um sensor optogenético que serviu para activar as células que tinham perdido todos os foto-receptores. Como a intervenção servia também para validar a segurança, os cientistas apenas aplicaram a terapia num dos olhos do doente. Sobre a expectativa de vida destas novas células estimuladas os cientistas acreditam que, tanto quanto sabem, deverão permanecer ali durante o resto da vida.
FotoUma ilustração do método usado DR

Combinaram esta intervenção com a estimulação da luz através de uns óculos especiais que conceberam para o projecto: os óculos tinham uma câmara que “captava imagens do mundo visual e as transformava em impulsos de luz que eram depois projectados na retina em tempo real, a fim de activar as células modificadas durante as tarefas visuais”. Este dispositivo, com uma câmara capaz de detectar a mudança no nível de luz em cada pixel, também teve de ser sintonizado com as sessões de treino com o doente.

Os óculos, explicaram os cientistas na conferência de imprensa, têm ainda um desenho pouco discreto, mas estarão já a ser redesenhados para ganharem uma aparência mais elegante. Mas o mais importante, sublinham, é que a abordagem genética foi bem tolerada e que o doente “foi capaz de reconhecer, contar, localizar e tocar diferentes objectos com o olho tratado, enquanto usava os óculos de protecção”. O sabor do sucesso após mais de 15 anos de trabalho e investigação.

A passadeira

Foi na conferência de imprensa que os cientistas contaram que, um dia, o doente chegou ao laboratório em Paris e disse que tinha conseguido reconhecer “riscas pretas e brancas na rua”. “Neste doente demonstrámos que o comportamento visual está correlacionado com a activação do cérebro e que corresponde à função visual”, disse José Alain Sahel. O processo de recuperação foi longo e os cientistas admitem que, por vezes, o doente até terá sentido alguma frustração com a demora dos resultados. Mas, para entusiasmo de todos, os resultados surgiram. E ao contrário das experiências anteriores realizadas com animais, desta vez o doente explicava o que via e como via.

Interessados nos pormenores mais pessoais, os jornalistas quiseram saber quais as expectativas do doente e qual a reacção. Se estaria ansioso por ver o rosto de um membro da família, um possível neto que nunca viu, um animal de estimação ou outra simples coisa qualquer. José Alain Sahel e Botond Roska baixaram as expectativas de quem não vive esta doença e lembraram que a visão que este homem recuperou não é suficiente para reconhecer um rosto, mas é um salto impressionante para que recupere uma boa parte da sua autonomia. E isso, que pode parecer pouco, faz toda a diferença para alguém cego. “Para reconhecer uma cara é preciso uma resolução muito alta e isso ainda não conseguimos neste trabalho com esta abordagem”, disseram. Além disso, no complexo processo de reaprendizagem, o cérebro tem de ser treinado para voltar a decifrar uma nova linguagem que vem da retina e que não podia ser usada há anos.

Em resposta (...), José Alain Sahel disse que desde a conclusão do texto do artigo o doente “manteve o benefício e espera poder treiná-lo e utilizá-lo mais com o retrocesso da crise da covid”. O oftalmologista confirmou ainda que este “é o primeiro projecto de sempre, revisto por pares, de qualquer benefício clínico” com uma terapia optogenética. Em breve, o estudo deverá incluir um grupo mais alargado com entre 12 a 15 doentes.

Por fim, o autor esclarece que este procedimento não deve funcionar em pessoas com cegueira congénita, que nunca viram nas suas vidas, ou seja, no fundo, a estratégia usada não serve para ensinar o cérebro a ver, mas mais precisamente para o recordar de como o fazia antes. “Isto está relacionado com todo o desenvolvimento do cérebro nos primeiros anos de vida. Estudos recentes indicam que alguns dos parâmetros espaciais do sistema visual são geneticamente codificados e que a sua afinação e amadurecimento ocorre muito precocemente. No entanto, os nossos planos até agora limitam-se à ‘cegueira adquirida’. A cegueira congénita poderá ser abordada mais tarde”, explicou.

Uma nova perspectiva

José Cunha Vaz, um reconhecido oftalmologista da Universidade de Coimbra, não participou neste estudo mas conhece o trabalho desta equipa e não hesita em mostrar o seu entusiasmo com os resultados obtidos. “É óbvio que não se trata de uma recuperação total da visão, mas é ainda assim é algo extremamente importante, sem dúvida. Fundamentalmente, porque pela primeira vez se consegue alguns resultados neste tipo de situações que eram irreversíveis.”

“Os foto-receptores que estão na base da visão captam a luz e conseguem fazer uma tradução do sinal luminoso para sinal nervoso que leva ao cérebro a imagem”, explica o investigador português. Para Cunha Vaz, esta terapia e outras que também estão a ser testadas com diferentes estratégias fazem parte de “uma perspectiva completamente nova na oftalmologia e que pode servir para outras áreas”. Para um doente cego, a possibilidade de reconhecer a presença de um objecto em cima de uma mesa é muito mais do que isso. “É muito importante na relação com as outras pessoas e com as tarefas básicas e mínimas do nosso dia para termos alguma independência e autonomia. Com esta recuperação que pode ser limitada, o doente consegue reconstruir o mundo à volta dele.”

Os autores concluem que a terapia optogenética mostrou que pode ser benéfica no restabelecimento da função visual em pessoas com cegueira relacionada com esta doença. Mas este é só um primeiro passo. Falta o resto da caminhada que agora se fará, como oportunamente assinala Cunha Vaz, com esta bela “luz ao fundo do túnel”.

Fonte: Público

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