viii. Face às questões anteriores, os exames são instrumentos válidos e justos de avaliação dos alunos? E são um processo válido, equitativo e justo na seriação e no acesso ao ensino superior?
ix. Ou, ao contrário, face às evidências acumuladas, os exames poderão ser, sobretudo, instrumentos ao serviço de uma ilusória igualdade de oportunidades, e um mecanismo de tecnologia social regulador de aspirações e consagração de uma aparente meritocracia?
(….)
Nos exames de 2008, particularmente no caso da disciplina de Matemática A do 12º ano, os resultados da 1ª e 2ª fase são paradigmáticos. Na 1ª fase, face a uma média nacional nunca obtida (140 nos alunos internos e 125 pontos no total), gerou-se a convicção generalizada de que tinha havido uma intenção deliberada do ME de baixar o nível de exigência para criar um sucesso de pendor administrativo. Obviamente que o ME se congratulou e atribuiu o excelente (e histórico) resultado às políticas do ministério, nomeadamente a um Plano Nacional da Matemática que estava em vigor apenas no ensino básico e que portanto não podia explicar aqueles resultados.
Mas os comentadores mediáticos ignoram isto e a opinião acredita na “ verdade”.. Na 2ª fase as médias alteraram-se completamente: 106 pontos no caso dos alunos internos e 89 pontos no total. Os dois lados da contenda ficaram sem argumentos. O que este caso revela é que os resultados são explicáveis pela prova em si mesma (e eventualmente pelos critérios de correcção), sem que haja, a nível do sistema, a intenção deliberada de colocar as provas mais fáceis em qualquer das fases, pois a escolha é aleatória – o mesmo, mas de sentido inverso, se passou na disciplina de Português – o que revela outro (grave) problema de insuperável injustiça: os exames da 1ª e 2ª fase não possuem um nível de exigência equiparável gerando resultados diferentes. Mas adiante voltaremos a este tema.
(…)
Mas esta questão, que carece ainda de verificação, não tem o significado nem a dimensão dos problemas de validade e fiabilidade dos exames. Os problemas identificados nos vários momentos do estudo empírico é que são de molde a questionar radicalmente a existência deste tipo de avaliação. Pois faz dos exames um exercício de quase-lotaria e um instrumento ilegítimo de selecção pois se baseia em pressupostos de equidade e de justiça que são muitas vezes, e largamente, falsos. E é por isso, que é preciso, antes da coragem, ter conhecimento do que se passa. Para, depois de ter conhecimento que os exames são, de facto, uma ficção de equidade num enredo meritocrático, ter, enfim, coragem para tomar as medidas que se impõem: as de diminuir o seu impacto no regime de acesso ao ensino superior, as de avançar para outros dispositivos de moderação de resultados, as de reforçar (ou mesmo introduzir novas medidas) as medidas de credibilização do sistema educativo, como é o caso da avaliação interna e externa das escolas, da avaliação de programas, da acção da administração educativas e das próprias medidas de política.
(…)
Ficou claro que os exames tendem a assumir o estatuto de decreto de inovações didácticas desejáveis, o que não deixa de ser ilegítimo e injusto. Ficou clara a obsessão da construção da fiabilidade através do recurso crescente a itens de resposta fechada, e ao fechamento dos critérios de correcção e classificação, o que sendo defensável, só o é se não puser em crise o princípio da verdade e da justiça.
Ficou claro que o sistema opera na base de invisibilidade social e política das práticas (Anderson: 1990), pois só assim se consegue manter de forma legítima. Ficou claro que a racionalidade é limitada (Herbert Simon: s/d) na generalidade dos campos do sistema: no campo da elaboração das provas e dos critérios; no campo da auditoria interna às qualidades das provas à sua equivalência entre a primeira e a segunda fases (em 2008); no campo das
explicações políticas para os resultados; no campo das decisões individuais e grupais de produção de classificações. Ficou clara a existência de extensos problemas relacionados com o standard da exactidão (informação-exames tardias, ausência de adequação ao contexto, ameaças óbvias à confiabilidade…). Ficou claro que os exames colocam os alunos num quadro de desigualdade de acesso e que, em diversas situações, avaliam mais o que ele não sabe do que o que sabe. Ficou clara a limitação da panóplia dos recursos colocados ao serviço da moderação de resultados a priori e a posteriori. Ficou clara a existência da necessária ficção meritocrática e a desejabilidade de a tornar o mais justa possível. Ficou claro que o mundo dos-sistemas coloniza o mundo-da-vida o que coloca problemas éticos dificilmente aceitáveis. Ficou clara a enorme subjectividade das classificações produzidas (sobretudo nos exames da área das humanidades) e que esta falta de fiabilidade relacionada com os classificadores, mas também com as provas e os critérios coloca inultrapassáveis problemas de validade e de equidade e justiça. Ficou, enfim, claro um modus operandi da ‘hipocrisia organizada’ que ora privilegia uma orientação para acção ora privilegia uma orientação política que busca em última instância a legitimação.
Estes dados [e a teoria das decisões baseadas em dados] conduzem-nos, enfim, ao cerne da questão: estes exames não podem ser justos. Não sendo justos, não podem ser legítimos. Não sendo legítimos só ser considerados como acto de violência (mais do que simbólica) sobre os alunos que deixaram de ser tratados como pessoas, como têm insistentemente denunciado, entre outros, Azevedo: 1994, Canário: 2005, e que precisam de voltar a assumir a dimensão pessoal num processo de reinstitucionalização da educação.
Face a isto, impõe-se a questão: como é possível que um sistema desta natureza funcione sob capa do consenso social e da meritocracia?
O quadro teórico que mobilizámos na primeira parte ajuda-nos a esboçar a resposta. O sistema permanece mais ou menos intocável – não obstante se assemelhar a uma indefinida (mas limitada) matança de inocentes – porque opera a partir de uma teoria universalista da justiça, fazendo de conta que todos os alunos têm a mesma posição inicial face aos exames, agem face a eles na presunção da ignorância do que vai ser examinado e na presunção de
validade e fiabilidade dos resultados, sempre atribuídos ao mérito individual dos alunos resultante do seu QI e do seu esforço.
[...]
José Matias Alves
Fonte: Voa FB
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