E se, na tua cabeça, um “q” virasse um “p” ou um “v” um “b”? E se as letras dançassem e tu lhes perdesses o rasto? E se, depois de uma primeira leitura, tivesses de ler uma segunda e talvez uma terceira? É um pouco assim que se sentem Alexandra Magalhães, de 23 anos, e Cláudia Dias, de 25, duas youtubers com dislexia. “No primeiro ano de escola, a minha mãe e a minha professora achavam estranho eu trocar algumas letras, porque eu até era uma criança inteligente”, conta Alexandra. Já Cláudia partilha que, “quando estava no 2.º ano”, lhe davam “coisas do 1.º”.
Não é um problema assim tão incomum. Segundo Helena Serra, uma das fundadoras da Dislex – Associação Portuguesa da Dislexia, “10% dos alunos em sala de aula terão estas características”. E, apesar de se ter verificado uma grande evolução desde a fundação da Dislex em 2000, Helena reconhece que continua a haver “algum desconhecimento”. Não porque o tema “não seja conhecido”, mas sim porque raramente se fala “das características, das necessidades destas crianças”.
Cláudia e Alexandra são provas de que é possível lidar com a dislexia sem que esta as defina. Para Alexandra, licenciada em Teatro pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, a ideia de criar um canal de YouTube surgiu, não por causa da dislexia, mas, sim, por causa da cicatriz que tem no peito, resultado de operações que fez ao coração. “Criei o canal para falar da auto-estima”, explica a jovem, que conta com perto de 1500 subscritores.
Já Cláudia é formada na área da Dança, o que pode comprovar alguma ligação dos disléxicos “às artes”, aspecto que é referido por Helena Serra. Cláudia já fazia parte dos vídeos de YouTube da sua irmã gémea quando, no segundo ano de faculdade, decidiu criar o próprio canal. Hoje, já com 48,8 mil subscritores, faz vídeos de lifestyle (se bem que gostava de aliar “o YouTube à dança”).
“A dislexia não é impeditiva. O importante é que haja uma intervenção precoce”, ressalva a professora Helena Serra, até porque há uma longa lista de figuras públicas disléxicas, desde Leonardo da Vinci, a Einstein ou Steven Spielberg. Mas, apesar dos percursos de sucesso destas duas jovens, quer Cláudia quer Alexandra apontam para a necessidade de consciencializar a sociedade para o problema.
“Acho que é importante informar os pais de crianças com dislexia”, comenta Alexandra, que não teve medo de publicar um vídeo em que fala abertamente do tema: “Quando os meus pais souberam que eu tinha dislexia, senti que tinha sido uma bomba.” Cláudia corrobora; toda a sua vida sentiu uma “certa vergonha”. Era muitas vezes atacada em comentários no YouTube por cometer erros ortográficos. A publicação de um vídeo sobre o problema foi um acto de coragem: “Com o YouTube, ganhei uma voz e queria ajudar as pessoas”, revela. A recepção do público ao vídeo foi melhor do que a esperada: “Sem dúvida que o melhor desse vídeo foi receber os testemunhos”.
Alexandra estava no 2.º ano da escola primária quando que lhe foram diagnosticados os “3D”, como a jovem lhes chama: “dislexia, discalculia e disortografia”, resultado de “ter sido operada duas vezes ao coração”. No 4.º ano, ficou retida na escola primária e, durante o ensino básico, teve sempre apoio a Língua Portuguesa, não podendo ser descontada nos testes de qualquer disciplina por erros ortográficos.
Cláudia vivia no Reino Unido durante a escola primária, o que atrasou o diagnóstico de dislexia, pois pensava-se que as dificuldades se deviam às barreiras linguísticas. Ao regressar a Portugal, foi-lhe finalmente diagnosticado o problema, mas a escola onde andou “não lidou bem com a situação”. “Davam-me apoio especial em conjunto com uma menina com síndrome de Down”, explica Cláudia. Só mais tarde, ao mudar de escola, começou a sentir “uma evolução” graças à ajuda que lhe foi prestada. “Aí começou o meu caminho de descoberta.”
Helena Serra explicita: “Os disléxicos são inteligentes e criativos nos domínios que não envolvam palavras escritas. Há um distúrbio neurológico. Há graus severos, graus intermédios, graus moderados e mais ligeiros (…). É como se as palavras não fossem fixadas no cérebro.” A professora, que decidiu fundar a associação ao entrar em contacto com uma colega disléxica, observa que muitos destes alunos são subvalorizados pois as suas dificuldades não são trabalhadas. “A dificuldade permanece ao longo da vida”, elucida. “Mas, com técnicas, vamos criando a capacidade de estarem à defesa, de fazerem a prevenção.”
Depois de ter partilhado o seu testemunho enquanto disléxica, Cláudia comenta que não sente necessidade de fazer mais vídeos sobre a disfunção neurológica: “Penso que não se justifica fazer mais vídeos sobre o assunto, tenho imensa gente que me ajuda e se identifica e tento dar um apoio no dia-a-dia”. Apesar disso, viver com a dislexia será sempre “um processo” durante a sua vida. Já Alexandra planeia continuar a falar sobre o tema através da criação de um podcast para “alertar e ajudar as pessoas”.
Fonte: Público
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