Terapias e actividades de associações de apoio foram suspensas ou condicionadas numa primeira fase da pandemia. Os desafios de associações e famílias passaram por explicar às pessoas com síndrome de Down o que estava a acontecer, mas também assegurar a transição para casa, imposta pelo confinamento.
Não existem dados oficiais sobre o número de pessoas com síndrome de Down em Portugal. Apesar de não existirem “estatísticas fidedignas”, estima-se que “haja cerca de 8000 a 9000 pessoas com trissomia 21” no país, indica um novo trabalho do pediatra Miguel Palha, outros médicos da rede Diferenças – o centro de desenvolvimento infantil da Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21 – e outros clínicos. Neste documento, estima-se que 42 a 43 pessoas com trissomia 21 tenham (ou tenham tido) covid-19. O valor foi calculado a partir dos dados da Direcção-Geral da Saúde (DGS) de dia 28 de Julho, que davam conta de 50.410 infectados desde o início da pandemia em Portugal.
Relativamente à taxa de letalidade na população portuguesa com síndrome de Down causada pela infecção por SARS-CoV-2, os dados são completamente desconhecidos. A DGS não respondeu às perguntas (...).
Como explicar uma pandemia?
Como se explica a pandemia de covid-19 às pessoas com síndrome de Down? Segundo Miguel Palha e Susana Nogueira, pediatras do neurodesenvolvimento que trabalham há vários anos com pessoas com trissomia 21, não se consegue explicar o conceito de pandemia, mas consegue-se contar o que se passa de uma forma simples.
“Vamos tentar dizer sempre que há uma doença que se transmite, que passa de pessoa para pessoa e que, por isso, têm de usar máscara e de lavar as mãos”, diz Miguel Palha. Para Susana Nogueira, “curiosamente, não tem sido difícil explicar-lhes” o que se está a passar, ainda que de uma forma geral. “Eles não percebem o contexto da pandemia, obviamente, mas sentem a preocupação dos adultos e a sensação de ameaça”.
As pessoas com síndrome de Down apresentam algum “défice cognitivo”, o que pode reflectir uma “menor capacidade de adopção de medidas de protecção”, indica o documento “Covid-19 e a Trissomia 21”. Mas “o espectro do défice cognitivo é largo”: há “indivíduos com trissomia 21 que têm mais entendimento do que outros”, diz Helena Antunes, presidente da Associação de Portadores de Trissomia 21 do Algarve (Apatris 21).
Há uma percepção não-verbal e uma certa preocupação que os leva a compreender a necessidade de se manterem protegidos, refere Susana Nogueira, coordenadora e responsável da consulta de trissomia 21 do Centro de Desenvolvimento da Criança do Hospital Pediátrico de Coimbra. “Como são menos elásticos em termos de compreensão, procedem de uma forma mais restritiva e absoluta ao usar os equipamentos”, explica.
“Faz-se o paralelismo com outras infecções”, continua a médica. Quando estão doentes, “já estão habituados a lavar mais vezes as mãos, a tossir para o cotovelo e a ter essa higiene respiratória. Às vezes, até é mais difícil para os pais deles, que estão menos treinados”, brinca.
O uso de máscara e o cumprimento das regras sanitárias não foi um problema, de uma forma geral. Helena Antunes conta que o seu filho, com 26 anos, percebeu que tinha de usar máscara. “Usa e não levanta problemas. Se ele percebe porque é que tem de a usar? Isso já acho que não, mas usa e cumpre as regras”.
Casos conhecidos
Miguel Palha, que é o director clínico do centro Diferenças, conta que apenas teve conhecimento de dois casos de pessoas com trissomia 21 que tiveram covid-19. “Eram novas, tinham 17 e 18 anos. Os sintomas foram muito similares aos da população geral”, conta. “O processo de recuperação foi em casa” e “passou normalmente”.
Já Susana Nogueira diz que não teve “contacto de nenhuma das mães a expor essa situação”. A pediatra do neurodesenvolvimento explica que, por terem estado em confinamento, “em termos de infecções banais respiratórias a situação até melhorou porque tinham menos contactos”.
A presidente da Associação Pais 21 - Down Portugal, Marcelina Souschek, só tem conhecimento de uma rapariga de 14 anos que teve covid-19. “Foi algo ligeiro” e a recuperação também foi feita em casa. “O que a mãe dela me disse é que ela tinha muita tosse, então foram ao médico e ela estava infectada. Eles todos à volta estavam imunes, mais ninguém tinha tido nada”.
Uma das conclusões preliminares de um estudo conduzido pela T21 Research Society, uma organização científica internacional sem fins lucrativos, indica que “as pessoas mais jovens (com menos de 20 anos) não costumam ter uma doença grave”. Este estudo foi desenvolvido numa população com trissomia 21 em vários países.
A mudança na rotina e a transição para casa
A pandemia também veio alterar a rotina das pessoas com síndrome de Down e das suas famílias. As escolas fecharam e as associações de apoio tiveram de suspender as actividades presenciais, que estão agora a retomar.
“O início foi terrível”, conta Alexandra Lopes, presidente da Amar 21 - Associação de Apoio à Trissomia 21. Tem uma filha com trissomia 21 com 17 anos. “Foi difícil para ela conseguir perceber o que se estava a passar porque quando se fica doente é alguém que fica doente, é uma pessoa”. “Então tivemos de recorrer a imagens e explicar que é um bichinho que não se vê, mas que deixa as pessoas muito doentes e que, por isso, ela não podia ir mais à escola”, continua.
Alexandra Lopes conta que a situação melhorou quando a sua filha percebeu que aquela realidade não era só dela: inicialmente, “o grande problema era ela pensar que era só ela que estava isolada”. “Quando começou as aulas online ficou muito mais leve, por estar em contacto com os colegas, por vê-los do outro lado”.
Com a pandemia, estabeleceram-se novas rotinas. Várias terapias e actividades ocupacionais passaram a ser feitas online. “[Era importante] Não deixarmos tudo parado, porque no fundo foi como ficou – as nossas vidas ficaram em suspenso”, reflecte Alexandra Lopes.
No caso da Amar 21, projectos que iriam começar em Março tiveram de “desacelerar” e acabaram por nascer online. Outras actividades, já desenvolvidas pela associação, foram readaptadas. A Pais 21 também manteve actividades virtualmente, como as aulas do grupo de teatro. “As coisas que pudemos continuar continuámos”, diz Marcelina Souschek.
Na Apatris 21, as actividades passaram igualmente a funcionar online, mas foi “um pouco complicado”, confessa Helena Antunes, “porque é difícil para alguns se concentrarem no computador, até porque as terapias costumam ser de 45 minutos”.
Como explica a médica Susana Nogueira, “crianças mais novas ou crianças com perturbação do desenvolvimento intelectual têm, muitas vezes, tempos de atenção mais curtos. Se no início o computador e o ecrã são novidade, a partir de alguns dias os miúdos já não ligam àquilo, já querem é brincar e não estar ali a fazer uma actividade”. No entanto, conseguiam uma motivação adicional ao verem “os pais a fotografar ou a gravar as tarefas e a mandar às educadoras”, acrescenta.
Resposta “insuficiente” das escolas
Na fase inicial da pandemia, as pessoas com síndrome de Down deixaram de ter alguns apoios. “Por estarem em confinamento, eles não iam às sessões de terapia da fala, de terapia ocupacional, ou não tinham as sessões de intervenção precoce. Embora, por último, começasse a haver forma de eles terem este apoio por videochamada e por tele-contacto”, aponta Susana Nogueira.
“Tudo aquilo que era da parte do Estado ficou congelado”, refere Marcelina Souschek, da Pais 21. A maior parte da intervenção passou então para os pais. “As terapias ficaram suspensas, a não ser as do particular, que conseguiram criar um canal de orientação para pais.”
São várias as dificuldades destacadas pelas associações. “De repente, as famílias tiveram de se adaptar para estarem ali a apoiar os filhos quase que 24 sobre 24 horas. Tiveram de ser pais e quase que professores”. Alexandra Lopes conta que as aulas online da filha só funcionavam se estivesse presente. “Havia a necessidade de uma terceira pessoa”, reitera Marcelina Souschek.
“Houve grandes problemas, mas aí temos que dividi-los”, continua a presidente da Pais 21, que destaca principalmente a falta de adaptação dos materiais escolares. Neste ponto, a resposta das escolas foi “insuficiente”: “As aulas eram dadas e em casa é que era feita a adaptação – uma coisa que supostamente vem da escola”. E “estamos a falar dos miúdos que tiveram contacto com a escola, em que a escola fez um esforço para continuar”, aponta, “porque há muitos que ficaram sem qualquer ligação à escola este tempo todo”.
A síndrome de Down é um factor de risco?
Ainda não há evidência científica suficiente, mas pensa-se que as pessoas com trissomia 21 apresentam um maior risco de infecção pelo novo coronavírus. Há também várias patologias que os tornam mais vulneráveis à covid-19.
O documento “Covid-19 e a Trissomia 21” indica que esta maior vulnerabilidade nas pessoas com síndrome de Down não está apenas no risco de infecção, “mas, também e sobretudo, na gravidade da mesma”.
Segundo Miguel Palha, tal deve-se a uma série de factores. “Por via da presença de um cromossoma 21 adicional em cada uma das células, sabe-se que há um envelhecimento precoce e que a idade é um factor de risco. Sabe-se também que a imunidade é um factor de risco para qualquer infecção. E não esqueçamos que cerca de 50% das pessoas com trissomia 21 tem uma cardiopatia, ou seja, uma disfunção cardíaca estrutural – que foi operada a maior parte das vezes – mas sabemos que está lá e que pode adicionar um risco a isto tudo”, diz.
As pessoas com síndrome de Down apresentam ainda uma prevalência muito aumentada de obesidade (factor de risco para as infecções) e outros problemas de comorbilidade frequente (doenças que coexistem com outras). “Portanto, era de esperar, face àquilo que se conhece, que a população com trissomia 21 fosse uma tempestade perfeita”, salienta Miguel Palha. “Não é a trissomia em si [que é um factor de risco], são as coisas que coexistem no contexto da trissomia”, resume Susana Nogueira.
Com uma amostra de 349 indivíduos, o estudo conduzido pela T21 Research Society mostra que a taxa de letalidade da covid-19 na população com síndrome de Down aumenta de forma significativa a partir dos 40 anos, mais cedo do que na população geral. Além disso, “a taxa de letalidade relativa a sujeitos com trissomia 21 e sem trissomia 21 com idades compreendidas entre os 60 e os 69 anos foram de, respectivamente, 72,7% e de 22,7%”. Por isso, aponta Miguel Palha, “estes dados preliminares vêm demonstrar que as mortalidades são consideravelmente superiores nesta população”.
Quem tem direito à vida
Num cenário de escassez nas unidades de cuidados intensivos, vários pais têm receio que os seus filhos, por terem trissomia 21, sejam preteridos. “Um dos receios é não haver meios suficientes para cuidar deles ou que eles não sejam elegíveis para tratamento”, conta Marcelina Souschek.
Miguel Palha diz que “este cenário” de escassez não se viu “em Portugal, mas surgiu em Itália e em Espanha”. “As pessoas de idade são preteridas em relação aos mais novos, as pessoas com comorbilidade mais grave e com uma esperança de vida menor também são preteridas. E também utilizam o critério da deficiência para fazer essa opção”, revela o médico.
Alexandra Lopes diz que há um “incentivo” ao aborto em caso de trissomia 21. Marcelina Souschek reforça: “Se nós olharmos para interrupções voluntárias da gravidez que são feitas porque o bebé tem trissomia 21, já conseguimos ver que talvez aquela vida não tenha, para as pessoas, o mesmo valor que outra”. “Não é um medo que nós tenhamos agora, mas são coisas em que temos de pensar”, conclui.
Fonte: Público
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