José Pacheco, professor, pedagogo, defende uma escola sem turmas, sem ciclos, sem testes, sem chumbos, sem campainhas. Aos críticos, pede alternativas e conta histórias de sucesso. Fundou um projeto inovador na Escola da Ponte, em Santo Tirso, em 1976, quando percebeu que não podia continuar a dar aulas. Derrubou paredes, juntou alunos, ergueu um método em que quem aprende define o seu ritmo de aprendizagem. Foi ameaçado, ouviu coisas feias, disseram-lhe que quando fosse mais velho iria ganhar juízo. Tem agora 65 anos e não mudou de ideias. Continua a acreditar que a escola são pessoas e não um edifício de betão. Não percebe a insistência nos exames, diz que se confunde avaliação com classificação, refere que os chumbos comprovam que o sistema não funciona.
Há 12 anos, partiu para o Brasil com o seu projeto na mala. Partiu por duas razões. «Permitir que uma nova equipa da Escola da Ponte continuasse o projeto sem a intromissão de um velho professor e encontrar no Sul a obra de Agostinho da Silva e educadores disponíveis para se melhorar, melhorando a educação das crianças e jovens», explica. Neste momento, do outro lado do Atlântico, acompanha mais de 100 projetos educativos. O Projeto Âncora é o mais conhecido e já ganhou fama internacional, após visitas de investigadores estrangeiros. Há uma semana, José Pacheco esteve em Portugal, em várias cidades – Almada, Loulé, Fundão, Viseu, Gouveia – a partilhar ideias, a falar do que sabe, a ouvir alunos, professores, educadores, responsáveis políticos. Partiu depois para o Chile, para fazer formação a convite de universidades e do governo chileno. Em meados de abril, regressa ao Brasil para retomar a orientação de projetos educativos.
Em 1976, no rescaldo da liberdade, criou com duas colegas o projeto pioneiro «Fazer a Ponte na Escola da Ponte». Sem turmas, sem testes, sem ciclos, sem campainhas. Chamaram-lhe louco quando dizia que era possível derrubar paredes e juntar alunos?
Confesso que, nos idos de 1976, estava quase a desistir de ser professor. Sentia que «dando aula» estava a excluir gente. Percebi que não devia continuar, mas não sabia fazer mais nada. A Ponte surgiu, talvez não por acaso, para me dar uma última oportunidade. Era uma escola como qualquer outra, escola pública degradada, que albergava as chamadas «turmas do lixo», maioritariamente constituídas por jovens de 14, 15 anos, que não sabiam ler nem escrever, e que batiam nos professores. Ali, encontrei duas pessoas, que faziam as mesmas perguntas: «porque é que dou as aulas tão bem dadas e há alunos que não aprendem?»
E então?
Aconteceu algo inusitado. Éramos profissionais competentes, mas deparávamo-nos com a falta de um compromisso ético com a profissão. Se o modo como a escola funcionava negava a muitos seres humanos o direito à educação, não poderia continuar a ser gerida desse modo. Se o modo como trabalhávamos não lograva assegurar a aprendizagem a todos os alunos, não poderíamos insistir nesse modo de ensinar. Quando modificamos o modo, asseguramos a todos o direito de serem sábios e felizes. Começámos a receber alunos expulsos e evadidos de outras escolas, alunos a quem chamavam «deficientes». Chamaram-nos loucos, lunáticos e outros epítetos que, por pudor, não reproduzo. Quando fiz as primeiras intervenções públicas, mais do que dizerem que o projeto era um arroubo de jovem professor, diziam-me que, quando eu fosse mais velho, iria ganhar juízo. E os detratores agiram de forma violenta, explícita. Um dia, talvez eu conte a história da Escola da Ponte. Ela foi feita de sofrimento e resiliência.
Foi assim tão difícil?
No decurso de mais de quatro décadas, foi muita a maldade humana que determinou as ações dirigidas contra a Ponte. Da destruição da nossa horta à destruição do hospital de animais, que as crianças cuidavam com tanto desvelo, ações levadas a cabo por criminosos a soldo de políticos locais, que pintaram com o sangue das vítimas na parede da escola: «Morte ao professor.» Do lançamento de panfletos, na calada da noite, contendo acusações falsas, até à publicação de boatos em jornais. Do terrorismo verbal, via telefone, até à agressão física. O sofrimento maior foi termos descoberto que muitos desses ataques eram provenientes de escolas próximas. Apercebemo-nos que o maior aliado de um professor é o outro professor, mas, também, que o maior inimigo de um professor que ouse fazer diferente para melhor é o professor da escola do lado.
Quando chegou à Escola da Ponte, ficou com uma «turma do lixo». Foi aí que percebeu que estava tudo errado?
Na Escola da Ponte, a decisão de mudar foi de origem ética. Encontrei jovens analfabetos que tinham sido ensinados do modo que eu antes ensinava. Se eu continuasse a trabalhar do modo como, até então, havia trabalhado, aqueles jovens continuariam sem saber ler. Tomei consciência de que, dando aula, eu não conseguiria ensiná-los. Na época, nem da existência de um Piaget tínhamos conhecimento. Agimos por intuição pedagógica, movidos pelo amor que tínhamos (como qualquer professor tem) pelos alunos.
Diz que numa aula não se aprende nada, que os exames são o método mais falível que existe, que chumbar é a prova que a escola não funciona. O que pode ser diferente? Como se avalia um aluno?
A afirmação é radical. Mas toda a regra tem exceção. Aprendi Francês escutando aula, porque me apaixonei pela professora. A aprendizagem é antropofágica. Não se aprende o que o outro diz, apreendemos o outro. Um professor não ensina aquilo que diz, transmite aquilo que é. Poderá acontecer aprendizagem em sala de aula, se forem criados vínculos e esses vínculos não são apenas afetivos, também são do domínio da emoção, da ética, da estética… O que dizer da avaliação? Que quase não existe, nas escolas. Um ministro de má memória introduziu mais exames no sistema. Mais exames não melhoram o sistema, porque não é a preocupação com o termómetro que faz baixar a temperatura. O teste é o instrumento de avaliação mais falível que existe. Conceber itens de teste, garantir fidelidade e tudo mais é um exercício extremamente rigoroso, assim como assegurar que as condições são as mesmas para todos quando se aplica o teste. Além disso, corrigir o teste também introduz uma subjetividade enorme. Esses instrumentos de avaliação apenas «provam» a capacidade de acumulação cognitiva, de armazenamento de informação em memória de curto prazo, para debitar no exame e esquecer.
Qual é então o modelo de avaliação que preconiza?
A avaliação praticada na Ponte e no Projeto Âncora é aquela que a lei estabelece: avaliação formativa, contínua e sistemática. Em muitas escolas aplica-se o teste e dá-se uma nota sem saber o que se faz. Há quem confunda avaliação com classificação e dê a nota a partir dos resultados dos testes. Eu sei que se alega considerar uma percentagem da nota dada a partir da avaliação de atitudes. Porém, não se apresenta os instrumentos de avaliação que permitam medir atitudes como a autonomia ou a criatividade. Diria que essa avaliação é feita a «olhómetro.» O ex-ministro Marçal Grilo afirmou que «as provas globais começam a ser inúteis.» Qualquer pessoa minimamente avisada, minimamente conhecedora dos ainda ocultos saberes das ciências da educação – bode expiatório de todos os males que apoquentam a educação deste país – sabe que a solução não passa por haver mais exames. Se quisermos falar de avaliação em linguagem de gente, poderíamos dizer que a quase exclusiva utilização de um mesmo tipo de instrumento de avaliação tem sido responsável por graves erros. Atenda-se ao exemplo do candidato a Medicina que, por uma centésima, não acedeu ao curso desejado.
Mas a verdade é que a avaliação em Portugal continua a assentar toda ela em teste e exames.
E os fervorosos defensores dos inúteis exames saberão em que consiste assegurar a validade ou a fidelidade de um item? Saberão aquilatar da subjetividade da correção de uma prova de exame? Terão conhecimento das grosseiras fraudes que os exames engendram? Terão passado, alguma vez, pela angústia da espera, foram afetados por uma ansiedade geradora de bloqueios? Os debutantes e amadores das coisas da Educação não leram nos jornais – que literatura especializada não terão lido, a avaliar pelos disparates que vão debitando na comunicação social – notícias de frequentes e abissais alterações de pontuação que decorrem da reapreciação de recursos? Na avaliação que ainda vamos tendo por hegemónica, é bem visível a ancestral prática seletiva. O ensino em massa é coerente com uma avaliação em massa. Os professores lamentam o dispêndio de tempo posto na correção de exames e alegam que o ministério os explora como mão-de-obra barata. O ministério, por sua vez, gasta fortunas em comissões a quem compete elaborar os testes e coordenar o serviço de exames, em viaturas e seguranças que transportam envelopes lacrados como se fossem as joias da coroa. Se outra razão não houvesse para acabar de vez com exames, uma se imporia. Associada à ideia de exame há sempre a probabilidade de utilização de «copianços». Para cada sala de exame que se preze, são escalados professores que, pressupostamente, são o garante de que os examinados não «copiam». Os «vigilantes» partem, pois, do pressuposto de que todo o aluno é, até prova em contrário, potencialmente desonesto. Haverá princípio mais antipedagógico que este?
O que defende esbarra num sistema ancorado em avaliações, notas, médias. O discurso político assente no rigor e exigência na educação não o convence?
O sistema somos nós. Que rigor e que exigência existem num modelo educacional no qual alunos do século XXI são «ensinados» por professores do século XX, que recorrem a práticas oriundas do século XIX? Rigor e exigência existirão em escolas onde se dê a todos condições de acesso, e a cada um, condições de sucesso.
E como se chega aí?
É incontornável falar do nó górdio da mudança das práticas escolares: a formação de professores, que continua imersa em equívocos. Continuamos cativos de um modelo de formação cartesiano. Sabemos que um formador não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é, veicula competências de que está investido. Mas ainda há quem ignore a existência do princípio do isomorfismo na formação, quem creia que a teoria precede a prática, quem considere o formando como objeto de formação, quando deveria ser tomado como sujeito em autotransformação, no contexto de uma equipa, com um projeto. Prevalecem práticas carentes de comunicação dialógica, culturas de formação individualistas, de competitividade negativa, de que está ausente o trabalho em equipa. Venho repetindo que a profissão de professor não é um ato solitário, mas solidário. Que o trabalho em equipa pressupõe um permanente convívio, estabilidade e lealdade a valores e princípios de um projeto. Isso não acontece numa escola de tempo parcial. Porquê 50 (ou duas vezes 45) minutos de aula, se a aprendizagem acontece 24 horas por dia? Porquê 200 dias letivos, se nos educamos nos 365 (ou 366) dias de cada ano?
O país alimenta um sistema de ensino baseado na burocracia? O Governo fala em dar mais autonomia às escolas, em flexibilização de currículos, em mais aulas experimentais…
Urge acabar com o experimentalismo. Alunos e professores não podem ser tratados como cobaias de laboratório. Acredito nos professores e parto daquilo que eles são para que se sintam seguros no processo de mudança. Aproveito a sua formação experiencial. Concedo todo o tempo necessário e condições de autotransformação. Talvez apenas seja preciso que os professores, para além de serem competentes, sejam éticos para que a mudança se opere. Mas é verdade que o país alimenta um sistema de ensino baseado na burocracia. Recordo um lamentável episódio. No fim de um ano letivo, com assiduidade plena e significativas aprendizagens realizadas, os alunos da escola de Monsanto «reprovaram por excesso de faltas.». Eu sei que parece mentira, mas aconteceu… As escolas são pessoas, mas o Ministério da Educação crê que uma escola é um edifício. E uma crença não se discute, deve ser respeitada. Porém, crenças e «achismos» não deverão ser suportes de política educativa. Autoritária e arrogantemente, burocratas enquistados no sistema educativo impõem práticas desprovidas de fundamento científico, ou legal (terão lido o artigo 48º da Lei de Bases?). Ousam tomar insanas decisões, como o despropósito da reprovação por excesso de faltas, porque estão conscientes da impunidade dos seus atos e contam com o obsceno silêncio dos pedagogos. A que faltas se refere o ministério, dado que os alunos estiveram em situação de ensino doméstico e até estiveram dentro de um edifício, a que o ministério chama escola? Conseguirá o ministério explicar por que razão alunos com 100% de assiduidade reprovam, enquanto outros jovens aprendem fora do edifício da escola?
Conte lá essa história.
Tudo começou em 2014, quando uma escola acabada de inaugurar foi encerrada pelo Ministério de Educação. Os pais dos alunos optaram pelo ensino doméstico, o agrupamento de escolas deu luz verde ao processo e as crianças foram acompanhadas por duas professoras. Porém, no primeiro dia de aulas do ano letivo seguinte, os pais foram informados de que o ministério não reconhecia a avaliação positiva aos alunos, atribuída pelas docentes. O ministério considerava ilegal a situação dos alunos, enquanto a Comissão de Proteção de Crianças afirmava que o alegado «abandono escolar» não fora provado. Os pais dos alunos pediram nova transferência dos seus filhos para o ensino doméstico, pedido que, garantem, foi aceite. E, enquanto o caso não se resolve, uma escola recém-inaugurada, e que custou cem mil euros, está fechada. As crianças são transportadas para a sede do município, que dista trinta quilómetros de Monsanto. São duas viagens diárias impostas por burocratas, que «acham» que as crianças devem estar fechadas no interior de um edifício a que chamam escola, numa sala de aula com x metros quadrados de área, durante x número de horas em x dias ditos letivos. Desfecho do lamentável episódio: a ignorância é atrevida e triunfou. Provavelmente, aqueles que detêm o poder de decidir confundem escola com edifício escolar. Relativamente a Monsanto: saberão o significado de avaliação formativa, contínua e sistemática? À luz da ciência produzida, desde há um século, a expressão «reprovar por faltas» é uma obscenidade. Serão analfabetos funcionais? Certamente terão lido o artigo 48 da Lei de Bases, mas foram incapazes de interpretar o seu significado.
Se é como diz, como foi isso possível?
Há cerca de uma dúzia de anos, e com burocráticos argumentos, um ministro de má memória tentou destruir o projeto da Escola da Ponte. Os sindicatos, a universidade e a sociedade civil impediram que essa obscenidade ministerial obtivesse êxito. Na presente situação, os professores portugueses permitiram que o autoritarismo imperasse e que critérios de natureza pedagógica fossem desprezados. Permaneceram apáticos. Mais uma vez, nada fizeram para acabar com a impunidade. É estranho e pesado esse obsceno silêncio. O professor assume dignidade profissional, sendo autónomo-com-os-outros. Porque um professor não ensina aquilo que diz, transmite aquilo que é. E enquanto o exercício da profissão não se pautar por critérios de natureza pedagógica, enquanto a burocracia prevalecer em detrimento da pedagogia, os professores continuarão a ser considerados os «bodes expiatórios» dos males do sistema. Faltará apenas que os professores sejam, efetivamente, críticos, reflexivos das suas práticas. Que, na relação com qualquer parceiro, se elimine o período letivo, o trimestre, o ano letivo.
Quarenta anos depois, a Escola Básica da Ponte tem nota máxima na avaliação externa do Ministério da Educação. Os alunos, em conjunto com os tutores, definem quinzenalmente objetivos de aprendizagem e são avaliados à medida que aprendem. Seria possível disseminar este projeto em Portugal?
Não diria disseminar, mas inspirar. São já muitas as escolas portuguesas que se inspiraram nas práticas da Ponte para mudar as suas práticas. Na Ponte de há 40 anos, as salas de aula foram substituídas por espaços de «área aberta.» Depois, deram lugar a aprendizagens em múltiplos espaços sociais (edifício da escola incluído), num anúncio da possibilidade de conceber novas construções sociais de aprendizagem. No edifício da escola, nas praças, nas empresas, nas igrejas, nas bibliotecas públicas, e centros culturais, passámos a contemplar um novo modo de desenvolvimento curricular, duas vias complementares de um mesmo projeto: um currículo subjetivo, um projeto de vida pessoal, a partir de talentos cedo revelados; um currículo de comunidade, baseado em necessidades, desejos da sociedade do entorno. São muitos e diversos os caminhos de mudança, sendo urgente que os educadores compreendam o que significa o termo «currículo». É preciso experimentar um novo modo de organização, em equipas de pessoas autónomas e responsáveis, todas cuidando de si mesmas e de todo o resto, numa escola realmente «pública». Não negando o potencial da razão e da reflexão, juntar-lhe as emoções, os sentimentos, as intuições e as experiências de vida. E uma escuta que, para além do seu significado metodológico, terá de ser humanamente significativa e de assentar numa deontologia de troca «ganha-ganha.» As escolas poderão desenvolver um currículo mais adequado às novas competências e exigências do século XXI. A velha escola há de parir uma nova educação. Mas as dores do parto serão intensas, enquanto as «naturalizações», as «certezas», as crenças ministeriais, a tecnocracia e a burocracia continuarem a prevalecer em domínios onde deveria prevalecer a pedagogia.
Tem sido um trabalho de parto muito demorado…
Creio que ainda não é consensual, mas é incontornável. A Ponte provou a possibilidade de uma escola onde todos aprendam e sejam felizes. Operou uma rutura total com o velho e obsoleto modelo educacional, que ainda prospera na maioria das escolas. Garante o direito à educação, que a maioria das escolas recusa. E numa escola da rede pública! Os efeitos do projeto que relatórios de comissões de avaliação independentes atestam são bem melhores do que os obtidos pelas escolas ditas «normais». Esses resultados constam de relatórios de avaliação externa, elaborados por equipas nomeadas pelo Ministério da Educação. São produto de uma avaliação isenta e atestam a elevada qualidade das aprendizagens realizadas pelos alunos. Diz-nos o último dos relatórios de avaliação que, quando transitam para outras escolas, os alunos da Ponte alcançam melhores notas do que os alunos de outras escolas conseguem alcançar. E, se no domínio cognitivo isso acontece, muito mais significativos são os níveis de desenvolvimento sócio-moral. É grande a preocupação com a vertente ética, e sabemos que o desenvolvimento estético anda ao lado do desenvolvimento cognitivo, sendo mutuamente influenciados. Não fragmentamos os saberes: estudos realizados com adultos formados ao longo dos últimos 30 anos demonstram que todos os nossos ex-alunos são pessoas socialmente integradas e realizadas. Talvez possa acrescentar que a Escola da Ponte provou que é possível outra educação, aliando excelência académica à inclusão social.
Em Cotia, cidade perto de São Paulo, no Brasil, criou uma escola que tem uma tenda de circo com oficinas de skate, kart, azulejos, música, para crianças dos 12 aos 14 anos que vivem em favelas. Como se ensina em contextos de vulnerabilidade social, económica, cultural?
Fui para o Sul apenas porque precisava de me afastar de uma escola onde labutei durante mais de trinta anos, para que novas equipas continuassem o projeto. Acredito nos professores. E encontrei no Brasil, como havia encontrado em Portugal, muitos professores que possuem os dois requisitos básicos da profissão: competência e ética. Acompanho os seus projetos e com eles aprendo. Isso basta-me. É preciso apenas que haja gente, educadores conscientes da necessidade e possibilidade de mudança, que se constituam numa equipa de projeto. Que saibam escutar sonhos e necessidades da comunidade em que estejam inseridos. E que ajam em função da lei e da ciência. Não há duas escolas iguais, nem acredito em modelos. Portanto, não existe a possibilidade de surgirem projetos iguais. Aquilo que é afim entre os projetos é a rutura com uma tradição de educação hierárquica e burocrática. São escolas que, com prudência (crianças não cobaias de laboratório), ousam reconfigurar as suas práticas, assumir formas específicas de organização do trabalho escolar, em dispositivos de relação, nas atitudes do dia-a-dia, que viabilizam práticas de educação integral. Outra semelhança é o fato de essas escolas cumprirem, efetivamente, os seus projetos político-pedagógicos.
O Governo acaba de traçar o que deve ser o perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória: jovens perseverantes, com pensamento crítico, que querem aprender mais. É este o caminho?
É um dos caminhos a partir de uma boa proposta que, em boa hora, o secretário de Estado, João Costa, lançou. Que não se suspenda esta medida de política educativa. Que não se hipoteque mais uma possibilidade de mudança a troco de votos nas autárquicas… As mudanças deverão partir, simultaneamente, das escolas e do poder público. E são precisos muitos anos para que se consolidem. Nos últimos anos, apesar da profusão de tentativas de reforma, programas, projetos, congressos, cursos e afins, não se logrou melhorar a qualidade da educação nacional. Mas Portugal tem tudo aquilo que precisa. E esse desiderato será alcançado quando as escolas deixarem de estar cativas de um modelo educacional obsoleto e de uma gestão burocratizada, na qual os critérios de natureza administrativa se sobrepõem a critérios de natureza pedagógica.
O que diria a uma criança de seis anos antes de entrar na escola? E a um jovem que acaba o 12.º ano?
Tenho netos dessa idade e não sei o que lhes dizer.
E o que diria aos pais que têm um filho que vai entrar na escola e aos pais que tem um filho que saiu da escola e não quer ir para a universidade?
Que procurem nas escolas professores que ainda não tenham morrido. E que com eles colaborem, para bem dos seus filhos. No início do projeto da Ponte, compreendendo o medo e respeitando a atitude conservadora daqueles que não queriam mudar, começámos um trabalho à parte. Inicialmente os alunos reagiam mal, porque era mais cómodo ouvir aula do que trabalhar em pesquisa, em projeto. Depois foram os professores das outras escolas que começaram a criar-nos dificuldades. Os pais dos alunos manifestavam dúvidas e receios, apenas desfeitos quando os seus filhos obtiveram excelentes resultados em provas nacionais e vestibulares. Os pais são pessoas inteligentes e amam os filhos. Os professores são pessoas inteligentes e amam os alunos. Estão do mesmo lado. Se explicamos aos pais, numa linguagem que eles entendem, que aula não tem que existir, que prova não prova nada, que o fundamental não precisa ser separado do resto, enfim, os pais entendem. Melhor que isso, no caso da Escola da Ponte, os pais entenderam tão bem que defendem o modelo e são eles que dirigem a escola. A questão é que quem sabe de pedagogia são os professores. É essa a grande distinção. Uma escola tem que ser gerida pela pedagogia, mas quem deve administrar financeiramente é a comunidade, através das famílias e dos pais. Os pais têm direito de ficar em dúvida. Querem a escola para os filhos que foi a escola deles. Mas se os pais forem esclarecidos e virem resultados apoiam e defendem os projetos. Foi isso o que aconteceu na Escola da Ponte. Ela é dirigida pelos pais. Não tem diretor.
Há bons e maus alunos?
Somos todos bons e maus alunos. Há boas e más práticas. E se identificamos necessidades especiais nos alunos, reconheçamos necessidade nos professores. Se é verdade que há dificuldades de aprendizagem, também haverá as de ensinagem. E não há alunos deficientes, mas práticas deficientes.
Um professor não ensina aquilo que diz, transmite aquilo que é. A frase é sua. Mas há professores desmotivados, desanimados, à espera que a reforma chegue rapidamente…
Os alunos aprendem o professor. O despertar da atenção do professor será o despertar da atenção do aluno. As escolas dispõem de excelentes professores a trabalhar do modo errado. E acontece o inevitável: doenças profissionais, idas ao psiquiatra, burnout…
As novas tecnologias vieram para ficar. Devem ou não estar nas escolas? Como é que os pais devem lidar com o «vício» do filho estar sempre agarrado a um tablet, a um computador, a videojogos?
Com ou sem novas tecnologias de informação e comunicação, a escola precisa ser reinventada. Mas do modo como as novas tecnologias estão sendo introduzidas nas escolas, temo que se transformem em panaceias, que apenas sirvam para congelar aulas em computadores, aulas que os alunos, acostumados ao imediatismo e à velocidade dessas tecnologias, acriticamente consumam, sem resquícios de cooperação com o aluno vizinho, dependentes de vínculos afetivos precários, estabelecidos com identidades virtuais. A Internet é generosa na oferta de informação. Basta clicar para repetir, até que a matéria seja compreendida. Tudo aquilo que um professor pode «ensinar» numa aula está plasmado, de modo mais atraente, na tela de um computador. Os professores do «futuro» irão manter-se ancorados em aulas obsoletas servidas por lousas digitais ou irão atualizar-se? Irão replicar aulas congeladas no YouTube e em tablets, ou irão usar o digital ao serviço da humanização da escola? É evidente. As novas tecnologias são incontornáveis. A Internet não é uma ferramenta, é uma sociedade. Apenas será necessário saber o que fazer com as novas tecnologias. É certo que as escolas se têm enfeitado de novas tecnologias, mas sem lograr intensificar a comunicação e a pesquisa. O modo como as escolas utilizam a Internet fomenta imbecilidade e solidão.
A distinção entre ensino público e ensino privado, na maior parte dos indicadores educativos, é regra no nosso país. Essas comparações fazem sentido?
As comparações e os rankings são disparates. Nem vale a pena comentar.
Muitos professores têm de andar com a casa às costas. Não é possível acabar com as fórmulas que colocam docentes tão longe das suas famílias?
Será possível evitar que os professores andem com a casa às costas quando se substituir o velho modelo por novas construções sociais de aprendizagem. Algo difícil dado que professor é a única profissão em que o estágio é feito antes de tirar o curso. Fazem 12 anos a ouvir aulas, entram na faculdade e ouvem aulas, e vão dar aulas. Podem até ouvir falar dos Piagets da vida, mas os estágios são feitos em escolas tradicionais, onde estão excelentes professores tradicionais que trabalham no paradigma do século XIX ou XVIII.
Portugal habituou-se a olhar para os exemplos educativos da Europa do Norte. É tempo de olhar para outros lados?
Portugal não precisa ir ao estrangeiro procurar as suas soluções. Elas estão cá dentro. Quais são hoje os autores que influenciam as escolas? Vygotsky, Piaget? Onde estão os portugueses? Nunca vi Agostinho da Silva numa sala de aula. A Finlândia extinguiu a Inspeção de Ensino e os exames, mas esqueçam a Finlândia. Dai atenção ao que se passa nos colégios jesuítas da Catalunha. A Europa do Norte e os Estados Unidos são pródigos na divulgação de absurdos e a última «inovação» veiculada pelos media foi a da aula invertida. O que vem a ser isso? Nas palavras do seu «criador«, flipped classroom, ou sala de aula invertida, é o nome que se dá ao método que inverte a lógica de organização da sala de aula. Os alunos aprendem o conteúdo no aconchego dos seus lares, digerindo videoaulas e jogos. Na sala de aula, fazem exercícios. Diz-nos a media especializada que o trabalho de pares foi inventado há cerca de vinte anos. Vinte anos? Há quase um século, o Vygotsky dizia-nos que a aprendizagem é resultante de um processo interativo. Também sabemos que, há mais de trinta anos, o Papert escreveu sobre o assunto. E que, há cerca de quarenta anos, o trabalho de pares era prática comum no quotidiano de uma escolinha de Portugal, muito antes de um professor de Física o ter «inventado.» Os professores portugueses deveriam procurar caminhos de alforria científica e a sua maioridade educacional, sem prescindir do que venha do estrangeiro. Novidades importadas não passam de inovações requentadas.
Acredita numa nova construção social de aprendizagem. O que é que isso implica?
Há quarenta anos, a Ponte provou a possibilidade de romper com o ciclo vicioso da reprodução, conseguiu que uma maioria de alunos oriundos da pobreza alcançasse a excelência académica e a inclusão social. O essencial será a criação de condições de reelaboração da cultura pessoal e profissional dos educadores. Isso compete a uma formação, que, ainda e infelizmente, peca por defeito. Estou a falar de projetos que produzem excelência académica e inclusão social e onde não há organização por idades. Onde as escolas não têm casa de banho do aluno separada de casa de banho do professor, onde os auxiliares de ação educativa ensinam a limpar aqueles que sujam, onde a educação acontece. Onde não há aulas, nem turmas, nem anos, que são dispositivos sem sentido nenhum, sem fundamentação científica. Concebeu-se uma nova construção social de aprendizagem onde todos aprendem e são felizes. Isso é possível.
Fonte: Notícias Magazine
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