Aos 2 anos, Pedro começou a fixar-se nas marcas e nas matrículas dos carros. Deixou de olhar para as pessoas e de dizer "papá" e "mamã". Tinha tido, até então, um percurso normal. Era "lindo, loirinho e perfeitinho". Embora houvesse um caso de autismo severo na família, Lucília Lampreia e o marido nunca pensaram que o problema fosse esse. "Na consulta de desenvolvimento, disseram-nos taxativamente: o Pedro tem autismo, tem um atraso mental e nunca irá falar. Caiu-nos o mundo em cima. O Pedro ainda deve ter na cabeça os gritos que dei naquele momento. Passei meses sem dormir", recorda.
Pedro tem agora 20 anos e frequenta o Centro de Atividades Ocupacionais da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo (APPDA) - Lisboa, onde há psicomotricidade, terapia da fala e ocupacional, ginástica, oficina de tecelagem, jardinagem e outras atividades. Casos como o seu são frequentes - uma em cada mil crianças nasce com uma perturbação do espectro do autismo (PEA) em Portugal -, mas a maioria dos adultos não tem este tipo de acompanhamento. Pais, associações e médicos revelam uma enorme preocupação com a vida adulta das pessoas com autismo, uma condição que pode variar entre ligeira e severa e se caracteriza por dificuldades na comunicação e interação social e por comportamentos, interesses ou atividades repetitivas e estereotipadas.
"A idade de ouro é a infância. Para os adultos existem muito poucas respostas. Não há sítios onde possam estar inseridos na comunidade", lamenta Isabel Cottinelli, presidente da Federação Portuguesa de Autismo. Um dos objetivos do dia mundial da consciencialização para esta perturbação do neurodesenvolvimento - amanhã, 2 de abril - é precisamente sensibilizar a população para a necessidade de integração destas pessoas. "É muito difícil arranjar e manter o emprego, porque têm características que não facilitam a comunicação e a interação social", refere. Só uma percentagem mínima chega à universidade. Com os centros ocupacionais cheios e em número insuficiente, são muitos aqueles que ficam em casa sem fazer nada. Muitos pais separam-se, muitos têm de abandonar os empregos. No que diz respeito aos lares/residências, "a resposta também é completamente insuficiente", frisa Isabel Cottinelli.
Para Eduardo Bizarro, pai de Miguel, de 12 anos, com uma PEA de grau mais severo, "um dos grandes desafios é a chegada dos 18 anos", porque "não há respostas". "Não podem ficar na escola, mas não há sítios para onde possam ir e não há emprego", alerta. Por isso, destaca, é necessário "apostar na educação para que tenham maior autonomia e até emprego". Algo que poderá estar mais perto de acontecer, ressalva, com a implementação de um Modelo de Apoio à Vida Independente para Portugal, que esteve em discussão pública até à semana que passou.
Diagnóstico é 100% clínico
Apesar de existir muita investigação na área das PEA, os avanços são lentos. Não há cura nem medicamentos específicos. Recentemente, surgiram notícias sobre um novo método de análise de biomarcadores metabólicos que permite identificar se uma criança tem autismo, mas, de acordo com os especialistas ouvidos (...), não tem validade. "Não há biomarcadores específicos para esta perturbação no cérebro. Há muitos projetos de investigação, mas estamos longe disso", diz Guiomar Oliveira, pediatria do neurodesenvolvimento e coordenadora da Unidade de Autismo do Centro de Desenvolvimento da Criança do Hospital Pediátrico de Coimbra (Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra).
Uma ideia partilhada por Carlos Nunes Filipe, psiquiatra e diretor clínico da APPDA-Lisboa: "O diagnóstico é feito com base na análise do comportamento da pessoa e na história do seu desenvolvimento (linguagem, coordenação motora, comunicação)." Felizmente, prossegue, há cada vez menos casos de crianças não diagnosticadas. De acordo com o clínico, esta é uma perturbação que nasce com os indivíduos e que geralmente só se deteta quando é suposto as competências, como a linguagem, começarem a aparecer.
"Aos 15 meses, a Beatriz não tinha linguagem, mas achámos que podia ser porque estava aos cuidados da avó", lembra Célia Figueira, de Coimbra. Aos poucos, e com o acompanhamento médico, detetaram outros sintomas. Além da ausência de linguagem, não existia contacto visual, resposta ao chamamento, as brincadeiras normais para a idade. "Fomos a uma consulta de desenvolvimento e saímos de lá com um diagnóstico de autismo." E muitas, muitas questões.
Célia via o autismo como "uma coisa horrível", ligada à agressividade. Chegou a casa com a ideia de que podia reverter o processo. "Tinha a esperança - errada - de que o autismo ia desaparecer. Mas não há cura." Isolou-se, não quis partilhar a sua dor. Com o passar do tempo, percebeu que não podia alterar a condição da filha. O caso de Beatriz é moderado. "Tem linguagem espontânea, embora nem sempre correta. Foi adquirindo vocabulário com o evoluir das terapias." Adora inglês, é "craque" na informática. O objetivo dos pais é "torná-la o mais autónoma possível".
Há casos em que há alguma autonomia, como o de Beatriz, e outros em que a dependência dos outros é total, como o de Pedro. Além das dificuldades de comunicação e de interação com os outros, as pessoas com autismo tendem a ser também muito dependentes de rotinas, muito sensíveis a mudanças e muito focadas em determinados objetos ou temas. Associados à PEA estão, por vezes, outros problemas, como a deficiência intelectual ou a epilepsia.
No dia-a-dia, Lucília diz que um dos grandes desafios é ter a paciência para ensinar tudo 10, 20, 30 vezes. "Atar os sapatos, lavar os dentes, vestir-se ou pôr a mesa são coisas que temos de ensinar diariamente", explica. Outro é educar a sociedade, para que Lucília e o filho e os milhares de pessoas na mesma situação não sejam olhados como "extraterrestres" se "há uma estereotipia [movimentos repetitivos] num café", por exemplo. É "tentar ser normal numa sociedade que nos acha extraterrestres."
Prevalência em estudo
Guiomar Oliveira, que também é professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, esteve envolvida num estudo epidemiológico, em 2000, que apontou para uma prevalência de um caso de PEA por cada mil crianças em idade escolar em Portugal. Sendo uma condição crónica, pode admitir-se que nos adultos será semelhante. Mas nos EUA há quem aponte para uma prevalência de 1%, o que a pediatra acredita estar relacionado com muitos "falsos positivos". Dentro de pouco tempo, deverão surgir outros números, já que a região Centro está a participar num estudo europeu que visa apurar a prevalência da PEA.
Segundo a coordenadora da unidade de autismo, Portugal evoluiu muito desde os anos 1990 no que diz respeito ao autismo na infância. Uma das conquistas foram as unidades de ensino estruturado para crianças com PEA nos agrupamentos escolares. Contudo, "um dos problemas é que as equipas nem sempre são especializadas nesta área", que é "diferente das outras" e exige "uma resposta específica". Mas o maior problema, reforça, "é na transição dos jovens para a vida pós-escolar", ao nível de "cuidados de saúde, educação e emprego", uma realidade que "atravessa o mundo inteiro".
A luta pela inclusão é diária. "Já há progressos, mas ainda há muito medo", lamenta Célia Figueira. Guiomar Oliveira diz que a adaptação e inclusão tem de ser bilateral. Os outros têm de saber lidar com o autismo. "Eles não mordem, não batem, não são seres terríveis."
Fonte: DN
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