Debruçada sobre a grande mesa de corte, Sofia Alves tem uma mão sobre o tecido branco, brilhante. Com a outra segura uma fita métrica. Olha para a esquerda na direção de duas colegas que provam uma peça à procura de alguma orientação. Aquelas camisolas soltas que elas vestem são o primeiro teste para o figurino da peça de teatro de final de ano da Escola de Segunda Oportunidade de Matosinhos, que há nove anos começou a chamar de volta aos estudos jovens em situação de abandono escolar. O espetáculo, que acontece no próximo mês, é o eixo fundamental de um modelo educativo que acaba de ser reconhecido como exemplar pelo Centro Europeu para o Desenvolvimento da Formação Profissional (Cedefop).
Sofia Alves tem 20 anos. Se tivesse feito o caminho esperado na escola já teria terminado o 12º ano antes dos 18. Na Escola de Segunda Oportunidade está no primeiro de dois anos que lhe darão a certificação equivalente ao 9º ano. O seu percurso nem sempre foi em linha recta. Faltou às aulas, deixou de aparecer na escola, chumbou repetidamente. A primeira tentativa de completar uma formação vocacional ficou a meio. “Não gostava nada daquilo”, recorda. Estava a estudar para ser cabeleireira. Não via a utilidade.
Chegada às férias de dezembro, deixou o curso. Por pouco tempo. Em finais de fevereiro entrou na Escola de Segunda Oportunidade de Matosinhos e encontrou na oficina de têxteis uma motivação que não tinha. “Nunca teria descoberto que tenho interesse nesta área se não tivesse vindo para aqui”, conta.
Sofia e as colegas estão a fazer um curso vocacional na área têxtil. Há um programa de formação a cumprir, mas a prática da escola é subordinar os conteúdos ao tema do espetáculo final de cada ano. Chamam-lhe “atividade integradora”. Em cada ano, a escola escolhe um tema para essa apresentação ao público e trabalha os conteúdos das disciplinas e oficinas em torno desse eixo central.
Origamis na sala de aula
Numa das quatro salas da antiga escola primária de S. Mamede de Infesta, onde funciona a Escola de Segunda Oportunidade, há cinco alunos na aula de Português. Estranha-se, por isso, a meia-dúzia de pássaros de origamis espalhados sobre a mesa. Na Matemática, aqueles alunos estão a trabalhar planos e sólidos e a professora decidiu usar a técnica japonesa de dobragem como exemplo.
“Aqui não há livros, nem manuais. Sou eu que escolho e vou ao encontro dos referenciais dos alunos”, contextualiza Sara Carvalho, a professora de Português, que pertence aos quadros de uma escola regular, a Professor Óscar Lopes, em Matosinhos. Foi dela a ideia de cruzar a Matemática com o Português nesta aula. Por isso, trouxe um conjunto de poemas que está a ser trabalhado pelos alunos. Em comum entre os vários textos está a sua temática: a liberdade.
É esse o conceito central do espetáculo de final de ano da escola, que acontece a 23 de maio, no Teatro Constantino Nery, em Matosinhos. Por causa dessa escolha, há pássaros por toda a escola. Chama a atenção o imenso grafito, nas traseiras do edifício, com uma fénix pintada em tons de cor-de-laranja.
Aos professores, é pedido que escolham os temas do currículo das disciplinas que se pode cruzar com a ideia de liberdade. Depois, esses contributos são vertidos no guião do espetáculo, dirigido por Poliksena Hardalova, que aqui todos tratam por Poli. “Os alunos enquanto ensaiam estão também a aprender”, garante esta actriz e professora búlgara que é hoje uma das figuras centrais do projeto educativo da Escola de Segunda Oportunidade.
Poli chegou aqui pela primeira vez com outras funções. Era supervisora de um projeto europeu em que a escola estava envolvida. Mas acabou rendida ao modelo e mudou-se para Portugal, há cinco anos. Deixa, por um momento, o português que já domina, para usar uma expressão inglesa que sintetiza a sua visão sobre o projeto: “Connect before correct” (ligar antes de corrigir). “Criamos uma ligação com os alunos e é com base nela que tentamos remotivá-los para as aulas”, explica.
Foi essa prática que justificou que o Cedefop, a agência europeia de formação profissional, tenha escolhido a Escola de Segunda Oportunidade de Matosinhos como um dos 44 casos incluídos no manual de boas práticas europeias no uso da formação vocacional como respostas ao abandono escolar precoce. O documento é lançado durante um fórum que acontece a 16 e 17 de maio, em Salónica, na Grécia.
O papel central das artes é um dos elementos que distingue o modelo da escola portuguesa – a única no país que pertence à rede europeia de educação de segunda oportunidade. A ideia em que esta se inspira é comum em toda a União Europeia desde finais dos anos 1990, mas a escola de Matosinhos tem “uma identidade própria e elementos que podem ser inspiradores para outras experiências”, afiança o diretor, Luís Mesquita.
Além das artes, a escola oferece também certificação escolar (para o 6.º e 9.º anos) e formação vocacional nas áreas têxtil, cozinha e carpintaria. Outro dos elementos que distingue este modelo de outras respostas a alunos em situação de abandono escolar é o seu programa de desenvolvimento pessoal e social. “Quando um jovem deixa a escola não é só porque teve dificuldades de aprendizagem”, defende Luís Mesquita. Na generalidade dos casos há um conjunto de problemas (económicos, familiares, de saúde ou com a justiça) que “conspiram contra ele”.
Na Escola de Segunda Oportunidade entende-se por isso que, para fazer um jovem regressar à escola, é preciso resolver “esse complexo de problemas”. E por que não podem ser as escolas regulares a fazer este trabalho? “Não estão em condições”, garante o diretor da escola de Matosinhos. Estes jovens tiveram já experiências traumáticas em escolas regulares e não será o local onde tiveram essas experiências a conseguir remotivá-los, considera Luís Mesquita.
70 alunos
São 70 os alunos inscritos na Escola de Segunda Oportunidade. Têm idades entre os 15 e os 25 anos e muitos deles estiveram dois, três, quatro anos, fora da escola, antes de aqui chegarem. Para os manter motivados, a escola sabe que é preciso um acompanhamento muito próximo. Por isso, cada jovem tem um Plano Individual de Formação e vai criando, ao longo do percurso, o seu próprio portfólio de formação, colecionando as evidências das aprendizagens que foi fazendo em várias áreas. A escola não segue um programa, como o ensino regular. Em cada ano, constrói a sua oferta num equilíbrio entre os recursos disponíveis e os interesses dos alunos inscritos.
O outro momento crucial é o do final da formação. A escola sabe que não pode deixar cair estes jovens novamente em situação de abandono. Por isso é criado um Programa de Transição para cada um deles. Em função das suas motivações, são encaminhados para formação, em escolas profissionais ou outras entidades certificadas, ou colocados a trabalhar. Segundo os dados internos da Escola de Segunda Oportunidade de Matosinhos, 90% dos jovens integram-se na formação ou no trabalho depois de acabarem a sua formação aqui.
Será esse o caminho de Sofia Alves. Assim que termine a certificação do 9.º ano, quer ir fazer um curso profissional na área de costura. Já tem andado a informar-se sobre a oferta existente no Grande Porto e está a tentar convencer a formadora a organizar uma visita de estudo à Modatex, o centro de formação profissional da indústria têxtil, com quem a Escola de Segunda Oportunidade tem uma parceria. “É disto que vamos todos precisar, não é?”, atira, em jeito de justificação. “Em vez de estar a pedir a alguém para pagar, posso eu própria fazer as minhas coisas. Ou fazer para outras pessoas, quem sabe.”
Fonte: Público
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