quarta-feira, 23 de abril de 2014

Quem é responsável pelo comportamento dos alunos?

A leitura recente de uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) e do artigo “Na tua escola há bullying?”, sugeriu uma breve reflexão, que partilho, sobre um problema que é suscitado frequentemente: quem é ou quem são os responsáveis legais pelos comportamentos dos alunos menores de idade em contexto escolar?
Este debate, que tem muito a ver com aquilo que cada um pensa sobre o papel da escola na educação dos alunos (“educação” em sentido lato), foi particularmente vivo durante o período que antecedeu a revisão do Estatuto do Aluno que se concretizou com a publicação da Lei n.º 51/2012, em 5 de setembro desse ano, e ressurge com muita regularidade nos media, porque a temática do comportamento dos alunos e da violência escolar é percecionada como um problema sério e de difícil resolução.

O verdadeiro grito de alma de quem quer ensinar e de quem quer aprender, e vê a sã convivência escolar perturbada por fenómenos comportamentais, deve ser levado a sério. Pode parecer uma visão exagerada e é certamente pessoal, porém, é um facto incontestável que a escola, que se quer heterogénea, inclusiva e participada, como é próprio das sociedades democráticas, enfrenta desafios complexos – que vão desde formas de coerção, mais ou menos subtis, como o bullying, até casos mais complexos de violência física – mas está pouco preparada, dispõe de poucos recursos para lidar com o problema e não há um consenso na comunidade quanto às soluções. Mesmo aqueles que pugnam por um reforço da autoridade do professor e da escola aceitam que, em muitos casos, não é possível solucionar este problema com uma atuação exclusiva no âmbito da escola porque os motivos que o explicam estão a montante da atividade educativa. 

Um procedimento disciplinar moldado pelo direito penal

A resposta do legislador tem sido, ao longo dos anos, a do endurecimento das respostas sancionatórias previstas no Estatuto do Aluno, hoje convertido num autêntico minicódigo penal em grande parte das suas disposições. 

A meu ver, esta solução é de eficácia duvidosa, por dois motivos. Primeiro, porque converteu a reação das escolas a infrações disciplinares num procedimento algo pesado (que inclui recursos, alguns dos quais suspendem a aplicação das medidas disciplinares) especialmente quando se trata da medida disciplinar de suspensão por mais de quatro dias, de transferência de escola ou de expulsão da escola. Compreende-se que seja assim, tendo em conta a necessidade de salvaguardar a presunção de inocência, assegurar o contraditório e garantir um processo justo. No entanto, mesmo com os apertadíssimos prazos previstos para o procedimento disciplinar, perde-se muita da eficácia na aplicação da sanção que, naquelas idades e no tipo de comportamentos que são sancionados, depende, em grande medida, da rapidez na resposta. 

Segundo, porque o legislador optou por tipificar os deveres dos alunos cujo incumprimento pode determinar a aplicação de uma sanção disciplinar (previstos no artigo 10.º do Estatuto e nos regulamentos internos das escolas). Este critério constitui uma manifestação de um princípio próprio do Direito Penal (uma vez mais), segundo o qual não há crime, nem pena, sem que haja uma lei que o preveja (nullun crimen nulla poena sine lege). É bom de ver que esta opção é muito limitada quando aplicada ao ambiente escolar. Mesmo considerando a necessidade de consagrar regras claras, não é possível prever tudo, especialmente quando verificamos que o elenco de deveres dos alunos consagrados no respetivo Estatuto é algo confuso e impreciso (por exemplo, consagra-se um “dever de lealdade”, cujo alcance não se compreende, ou um “dever de reparar os danos por si causados”, quando se deveria antes consagrar um dever de respeito pelo património da escola e dos seus utilizadores, incluindo o dever de reparação no elenco de medidas disciplinares).

Mais complexa é a previsão de medidas disciplinares sancionatórias de transferência de escola e de expulsão da escola. Mesmo considerando o caráter excecional destas sanções (no caso da expulsão é uma competência, delegável, do diretor-geral da Educação) e a necessidade de compensar a sua aplicação, especialmente na transferência de escola que só pode ser aplicada a alunos com idade igual ou superior da 10 anos e desde que exista escola próxima servida de transportes públicos ou escolares (artigo 28.º, n.º 9, do Estatuto), elas traduzem-se numa autêntica desistência daquela escola de recuperar o aluno. Ora, embora seja aceitável um princípio de que problemas extremos podem justificar soluções extremas, não deixa de ser preocupante constatar que se consagra a possibilidade de exclusão de alunos do sistema. Por muita compreensão que se tenha, face a alguns casos concretos conhecidos, em que a capacidade de atuação da escola (e mesmo de outras entidades que intervêm na área social, da promoção e proteção de crianças e jovens e na intervenção tutelar educativa) se revela muito limitada ou insuficiente, não deixa de ser verdade que a expulsão não é, seguramente, uma solução para o aluno, que fica numa espécie de “terra de ninguém”.

Responsabilidade dos pais e “multas”

Uma das dimensões de maior significado no Estatuto do Aluno é a consagração de um princípio de heterorresponsabilidade da comunidade educativa (artigo 39.º) que vincula todos os que a integram aos objetivos inerentes ao direito à educação. Este princípio é adequado à forma como a Constituição e a Lei de Bases do Sistema Educativo concebem o respetivo funcionamento. 

No entanto, o grau de responsabilidade de cada um dos seus integrantes não foi sempre o mesmo. Um dos aspetos de maior relevo – porventura o mais polémico – da alteração ao Estatuto do Aluno de 2012 foi a inclusão de contraordenações (artigo 45.º), punidas com coimas ou com a privação de direito a apoios escolares no âmbito da ação social escolar, aplicáveis a situações de incumprimento, por parte de pais ou encarregados de educação, dos deveres de matrícula, frequência, assiduidade e pontualidade injustificadas; da não comparência na escola quando os filhos ou educandos atinjam metade do limite de faltas injustificadas ou quando corra procedimento disciplinar instaurado aos filhos ou educandos; ou, quando se verifique o incumprimento de medidas de recuperação, disciplinares ou sancionatórias ou os filhos ou educandos faltem a consultas ou terapias decididas no âmbito daquelas medidas.

O sistema é recente e não estão disponíveis dados oficiais sobre a frequência e o número de multas cobradas ao abrigo deste regime. Esta opção é muito discutível, desde logo porque ainda não se sabe (não decorreu tempo suficiente para fazer essa avaliação) se é dissuasora dos comportamentos que pretende punir. É, contudo, um ar do tempo, este de introduzir a cobrança de valores pecuniários pelo incumprimento dos deveres parentais, equiparando-os aos ilícitos de mera ordenação social e convertendo “…o produto das coimas aplicadas [em] receita da própria escola ou agrupamento” (artigo 45.º, n.º 8). 

E a escola? 

Naturalmente continuam presentes os deveres da escola, institucionalmente considerada, de assegurar o decurso normal das atividades educativas e um especial dever de intervenção junto de cada aluno. 

Voltando ao princípio e ao acórdão que sugeriu este texto, a história conta-se em poucas palavras: o STA confirmou uma condenação do Ministério da Educação e de uma câmara municipal ao pagamento solidário de uma indemnização aos pais de uma aluna que sofreu lesões corporais no recreio de uma escola. A aluna em questão, devido a um problema congénito, deslocava-se em cadeira de rodas. No recreio em causa, a Câmara Municipal fez umas obras e, apesar dos alertas dos encarregados de educação, não colocou guardas numa rampa. Um dia a aluna caiu nessa rampa, as lesões agravaram-se e viria a falecer. O seguro escolar pagou o que lhe era imputável, mas os tribunais entenderam que o Ministério da Educação e o município deviam pagar uma indemnização por danos morais (fora, portanto, da responsabilidade civil coberta pelo seguro). 

O que é interessante nesta decisão são os fundamentos da condenação destas duas entidades públicas. Entendeu o STA que houve uma violação do “dever de cuidado” e do “dever de vigilância”, o que constitui um bom epílogo para esta, necessariamente breve, reflexão.

Tiago Saleiro
In: Educare
Nota: Destacado da responsabilidade do editor do blog.

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