O treino fonológico/fonémico tem por objectivo estimular nas crianças o conhecimento fonológico e fonémico, criando condições para melhor aprendizagem da leitura no início da escolaridade formal. Levantam-se, porém, duas questões. Existe algum formato de treino fonológico particularmente útil na aprendizagem da leitura? Além disso, independentemente da modalidade de abordagem, é a instrução fonológica útil nessa aprendizagem?
Existe algum formato de treino fonológico particularmente útil na aprendizagem da leitura?
Num artigo intitulado «Is phonological-only instruction helpful for reading?: a meta-analysis», Stalega et al. (2024) pretendem saber se o treino fonológico é útil na aprendizagem da leitura por comparação com outros métodos. Os autores começam por sublinhar que a investigação já demonstrou, com clareza, a relação entre consciência fonológica (sensibilidade à estrutura dos sons da língua) e proficiência na leitura. Numerosos estudos evidenciaram que crianças e adultos com dificuldades no reconhecimento de palavas escritas têm fracos desempenhos em tarefas que exigem consciência fonológica, especialmente ao nível fonémico, o que leva muitos educadores a incluir tarefas fonológicas no ensino da leitura. Existe, porém, alguma controvérsia quanto à utilização de letras impressas em conjunto com tarefas fonológicas.
De acordo com os mesmos autores, alguns defensores do treino exclusivamente fonológico (sem contacto com letras) argumentam que o uso de letras impressas pode introduzir um elemento não-fonológico que, mesmo melhorando a capacidade de descodificação a curto prazo, pode limitar o desenvolvimento de estratégias fonológicas mais avançadas, essenciais na descodificação de palavras desconhecidas. Os modelos coneccionistas de leitura sugerem, pelo contrário, que a prática com palavras impressas melhora simultaneamente as representações fonológicas e o conhecimento de estruturas ortográficas frequentes. Mais importante ainda, sugerem que as intervenções que incluem associações grafemas-fonemas aumentam o próprio conhecimento fonológico e fonémico.
Stalega et al. (2024), revendo diversas meta-análises, encontraram, em geral, efeitos moderados a robustos, de diversas formas de instrução da consciência fonológica no conhecimento fonémico. Em duas dessas meta-análises, encontraram-se, inclusivamente, efeitos robustos na leitura de palavras. Contudo, Castles e Coltheart (2004) consideraram que os dados disponibilizados em algumas dessas meta-análises não permitiam concluir que a instrução isolada em consciência fonológica tivesse efeito no reconhecimento de palavras, mas apenas na soletração.
Por outro lado, estudos que incorporaram letras na instrução de consciência fonológica encontraram efeitos mais significativos em leitura e resultados semelhantes em consciência fonológica, independentemente do método utilizado — por exemplo, os de A. G. Bus e M. H. van IJzendoorn (1999) e de Linnea C. Ehri et al. (2001). No seu conjunto, estes estudos sugerem que os treinos de consciência fonológica são menos úteis na leitura de palavras se o ensino incluir o contacto com letras. Isto parece particularmente verdadeiro em alunos com dificuldades da leitura.
Da sua própria meta-análise, Stalega et al. (2024) concluem que:
- a instrução em consciência fonológica tem muito mais efeito no conhecimento fonológico do que na capacidade de leitura;
- quando se compara a instrução em consciência fonológica isoladamente com a instrução com base em texto (letras impressas), a última evidencia efeitos superiores, não só em provas de leitura, como em provas de consciência fonológica;
- o treino em consciência fonológica, por si só, não parece particularmente útil em alunos com dificuldades de leitura.
A instrução em fonologia é útil na aprendizagem da leitura?
Um estudo de Pinto e Lopes (2016) abordou directamente esta questão, com implicações teóricas e práticas bastante relevantes. Analisou-se as competências fonológicas e fonémicas e de leitura de crianças a frequentar o 1.º ano de escolaridade, provindas de três jardins-de-infância com organização curricular diferenciada. Um dos grupos de crianças recebeu treino sistemático na área da fonologia ao longo do último ano de jardim-de-infância. Os outros dois grupos não receberam treino nesta área. Porém, os alunos de um desses grupos já sabiam ler por frequentar a Escola João de Deus, onde, por norma, o ensino da leitura tem início aos 5 anos de idade.
No início do 1.º ano, os três grupos foram avaliados em provas fonológicas e fonémicas. Verificou-se que o grupo que recebeu treino fonológico obteve resultados ligeiramente superiores aos do grupo sem treino fonológico/fonémico ou de leitura, mas a diferença não foi estatisticamente significativa. Este resultado é surpreendente, dada a extensão do treino do primeiro grupo e a avaliação incidir na competência treinada. Por outro lado, os alunos da Escola João de Deus, que já sabiam ler, tiveram um desempenho significativamente superior aos outros dois grupos nas provas fonológicas/fonémicas, o que sugere que aprender a ler num sistema alfabético promove em si o conhecimento fonémico, mesmo na ausência de qualquer treino específico.
No final do 1º ano, bem como no início e no final do 2.º ano, os grupos foram novamente testados em provas fonológicas e fonémicas e em leitura. No final do 1.º ano, as diferenças nas provas fonológicas esbateram-se e deixaram de ter significância estatística, o que se reconfirmou no início e no fim do 2.º ano. Estes resultados sugerem que a aprendizagem da leitura promove o conhecimento fonológico e fonémico, e que esta aprendizagem é mais sólida do que a resultante do treino explícito em fonologia. O ensino da leitura pode, pois, ser a forma mais eficaz de promover quer a leitura, quer o conhecimento fonológico.
No que concerne à leitura propriamente dita, os alunos da Escola João de Deus evidenciaram um desempenho superior em todas as avaliações, o que não surpreende, dado terem mais um ano de experiência. As diferenças atenuaram-se até ao final do 2º ano, mas mantiveram a significância estatística.
Este estudo de 2016 evidencia que o conhecimento fonémico poderá estar envolvido na aprendizagem da leitura, mas de uma forma que não parece justificar a utilização de treinos de fonologia na promoção da leitura. Na verdade, são as exigências da aprendizagem da leitura num sistema alfabético que mobilizam e activam o conhecimento fonémico, não contribuindo o treino em fonologia directamente na aprendizagem da leitura.
Conclusões
Os estudos aqui apresentados questionam a utilidade dos exercícios fonológicos e fonémicos na aprendizagem da leitura, particularmente quando realizados sem contacto com as letras impressas (o que é comum nos jardins-de-infância). De uma forma geral, os estudos sugerem mesmo que a leitura e a consciência fonológica e fonémica são promovidas de modo mais eficaz no ensino directo da leitura do que na instrução em fonologia ou em conhecimento fonémico.
As conclusões destes estudos têm implicações na prática educativa. Nos jardins-de-infância, estes exercícios poderão ser interessantes, mas pouco ou nada relevantes na aprendizagem da leitura. Por outro lado, pouco acrescem ao efeito do ensino directo da leitura. Consequentemente, a forma mais eficaz de promover a aprendizagem da leitura será o ensino directo da leitura e não o treino ou os exercícios fonológicos e fonémicos, seja em jardim-de-infância, seja nos primeiros anos de escolaridade. Mas estarão os jardins-de-infância interessados em transformar-se em pré-escolas ou mesmo em escolas
João Lopes
Fonte: Iniciativa Educação
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