Há um ciclo natural de renovação do quadro de professores de um sistema educativo: depois de um período de contratação em massa, sucede-se um período de excesso de oferta perante as necessidades de recrutamento, ao qual, invariavelmente, se sucede um outro período de nova necessidade de recrutamento, pela renovação natural dos quadros de docentes. Estes períodos variam de país para país, conforme a evolução das sociedades.
Em Portugal, entre sensivelmente 1985 e 1999, tivemos a primeira fase deste ciclo: não faltavam professores porque os formámos em grandes quantidades quer nas universidades quer nos politécnicos. Muitos desses professores estão hoje no final do seu ciclo profissional.
Entretanto, vivemos um início de século com redução demográfica, acumulação de professores profissionalizados em excesso e sem lugares de quadro disponíveis nas nossas escolas públicas. Rapidamente a situação levou a que muitos professores profissionalizados procurassem sobreviver fora da carreira docente e não mais voltassem, na sua maioria. Em 2014, quando se publica o DL n.º 79 que ainda hoje regula a formação inicial de professores, avisa-se já, no texto introdutório, que será necessário renovar o quadro de docentes nos anos vindouros. Passou politicamente despercebido este primeiro aviso, que resultava de estudos que já existiam no Ministério da Educação sobre projecções de necessidades docentes nos anos seguintes. As universidades e os politécnicos acompanharam a visão pessimista do excesso de professores na primeira década de 2000 e, gradualmente, desinvestiram nos cursos de formação inicial.
Quando em 2007 se implementam os mestrados em ensino, já no âmbito do chamado processo de Bolonha, a procura da formação inicial já está em contingentes reduzidos. A pouco e pouco, cursos vão fechando e cursos que permanecem abertos são reduzidos a um mínimo de recursos humanos para poderem funcionar e, anualmente, quem trabalha nesta área, tem de justificar a continuidade desses cursos. Não há investimento estratégico algum, nem nas instituições de ensino superior nem nos governos sucessivos.
Em 2015, quando o actual Governo chega ao poder, esta situação é simplesmente ignorada e nenhuma pressão é feita ao ensino superior para acautelar a formação imediata de mais professores − exactamente aqueles que sabemos agora serem necessários, como sabíamos nessa altura. O Conselho Nacional da Educação foi produzindo relatórios suficientemente claros a denunciar a urgência da formação de mais professores (Pareceres e Recomendações de 2016 e Estado da Educação 2021). Tudo ignorado e nenhum plano a curto ou médio prazo para resolver o problema.
Há um ano, o Governo indicou, e bem, um grupo de trabalho para rever a legislação sobre formação inicial de professores, sobretudo para incluir a sua promessa eleitoral de voltarmos a ter um modelo com “estágios remunerados” (a rigor, os estudantes dos mestrados em ensino, durante o seu 2.º ano, teriam já um vínculo contratual com a escola onde estivessem a realizar o seu “estágio”, com uma remuneração e com turmas próprias).
Na discussão nacional entretanto havida, houve consenso sobre este modelo que recupera muito do que foi a profissionalização em serviço. Estava previsto começarmos 2023 a preparar esta mudança importante que pode, no imediato, dar ao país mais 1500 professores (a média dos que estamos a formar em todos os cursos de mestrado em ensino).
A contestação social dos professores, entretanto, alterou por completo esta estratégia e ninguém sabe, de momento, o que vai acontecer e se ou quando podemos implementar esta medida consensual. Tem-se falado mais dos mecanismos de recrutamento nas negociações políticas e esquece-se que se não tivermos novos professores formados é irrelevante saber qual o mecanismo a aprovar. O cenário para os próximos anos é previsivelmente catastrófico para o nosso sistema educativo.
Recordo que é um processo técnico complexo que, em regra e na melhor das calendarizações, demora cerca de dois anos a executar. Contudo, o ministro da Educação anunciou que no próximo ano vamos ter já “estágios remunerados”. Não sei como o vai fazer no actual quadro jurídico que regula a formação inicial de professores. Mesmo que haja muita criatividade jurídica, é humanamente impossível executar essa medida tão rapidamente quanto desejável, porque:
- é necessário um plano de revisão de todos os planos de estudo em vigor (não está feito nem ninguém sabe quais possam ser as novas directizes);
- é necessário um plano financeiro para as instituições de ensino superior para suportar essa mudança, recrutando mais docentes, pois o actual contingente é manifestamente reduzido;
- é necessário um plano de pagamento justo aos professores cooperantes das escolas básicas e secundárias onde esses “estágios remunerados” vão funcionar;
- é necessário um plano sério para que o previsível ano de indução (após o mestrado) seja efectivamente um ano de complemento de aprendizagens científicas que vão ficar de fora, obrigatoriamente, num modelo de mestrados em ensino com um ano de estágio completo nas escolas;
- é necessário um plano de integração de outras formações no processo de formação inicial, quando os candidatos possuem já habilitações obtidas no estrangeiro ou em áreas próximas da disciplina para a qual pretendem adquirir habilitação profissional (são cada vez mais os candidatos com este perfil).
O problema de tudo isto é que não conheço nenhum destes planos e duvido que estejam sequer a ser preparados, com excepção do primeiro que deve estar a aguardar alguma bonança na tempestade provocada pelos professores na sua justa autodefesa perante um Estado que nunca os tratou bem.
O país vai perder com toda esta falta de investimento na educação – a única área social em que há sempre retorno quando se investe. Já perdemos demasiado tempo a estudar este problema que está estudado há tempo suficiente para sabermos, com tristeza o digo, que a escola pública vai colapsar antes que a agenda 2030 esteja cumprida.
Carlos Ceia
Fonte: Público
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