Inicia-se mais um ano escolar e, uma vez mais, são evidentes os problemas da escola pública, fazendo com que os cidadãos, a muito custo pessoal e familiar, optem, cada vez mais, por sair da rede de ensino pública.
Muito recentemente, foi noticiado que, fruto da forma como o ensino público foi gerido, as escolas privadas não tinham mãos a medir com o número de novos pedidos.
O nº2 do Artigo 13º da Constituição da República Portuguesa expressa que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever”, no entanto vivemos tempos onde assistimos ao ensino público a ser usado como instrumento de políticas discriminatórias – políticas essas, que diferenciam agregados familiares não pelas suas condições socioeconómicas, mas sim pela escolha do estabelecimento de ensino. São, ironicamente, os que mais clamam pela Constituição, os primeiros a contrariarem os seus valores.
Falo, mais concretamente, da medida implementada em 2016, da gratuitidade dos manuais escolares a todos os estudantes do ensino público que frequentem o primeiro ciclo e, mais recentemente, da sua alteração, em 2019, tendo sido alargada a todos os alunos da escolaridade obrigatória na rede pública.
Esta medida, anunciada com grande pompa e circunstância como um fator de ajuda às famílias portuguesas, em vez de promover um maior acesso ao elevador social de quem realmente precisa, cava ainda mais esse fosso. Senão, vejamos:
- Com a introdução desta medida, não existe qualquer alteração aos apoios prestados a agregados familiares abrangidos pela Ação Social Escolar (ASE). Isto implica que a reivindicação antiga de famílias mais carenciadas, que passa pela atribuição dos cadernos de atividades e livros de fichas, continua por cumprir. Quem tem filhos e filhas a estudar sabe o quão essenciais são atualmente estes recursos, para não deixar nenhuma criança para trás e permitir verdadeiramente a igualdade de acesso. Assim, enquanto quem precisa não beneficia em nada deste aumento de despesa, as famílias que têm condições económicas para a aquisição dos manuais beneficiam mesmo sem precisar.
- Cerca de 15% dos alunos matriculados frequentam o ensino privado em Portugal, alguns na mesma situação socioeconómica que os seus colegas do público e não têm acesso à mesma medida. Por exemplo, atendendo ao ranking das escolas, se uma família viver em Coimbra ou no Porto, terá a possibilidade que os seus educandos frequentem uma boa escola pública, classificada entre as primeiras 60 do país, caso resida ao lado dela. Pelo contrário, se morarem em Palmela, estarão a escolher entre o Colégio St. Peter’s (10ª melhor escola do país) e a Escola Secundária do Pinhal Novo (373ª melhor escola do país), uma vez que o Estado não permite que, por exemplo, seja escolhida a Escola Secundária Bocage (em 138º lugar). Qualquer família nestas circunstâncias, que o possa fazer, vai optar por um sacrifício adicional para que os seus filhos frequentem a escola privada. E não terá acesso a manuais gratuitos. Essa mesma família vai continuar a investir no ensino público, embora o seu educando não vá beneficiar do mesmo. Portanto, este sacrifício custa a dobrar. São os seus impostos que estão a financiar o sistema público, do qual abdica sem qualquer tipo de benefício.
Contabilizando os números de alunos matriculados em 2019, a medida atual custou a todos nós, este ano, cerca de 155 milhões de euros1. Pergunto: que resultados foram atingidos que justifiquem este valor de investimento?
Vamos supor que o que se pretende é, efetivamente, contribuir para o sucesso escolar dos alunos. Nesse caso, será mais racional, em vez de garantir a gratuitidade mesmo para quem não necessita, assegurar que os agregados familiares com dificuldades económicas têm os manuais escolares obrigatórios e os livros de fichas – neste caso, considerando que 36,1% dos alunos matriculados no ensino público são beneficiários da ASE2, o investimento total seria de cerca 90 milhões de euros.
Mesmo estendendo esta medida aos agregados familiares que não estão no ensino público, vamos, por absurdo, admitir os mesmos 36,1% – o investimento total seria de 106 milhões de euros!
Este tipo de soluções, embora incidindo naqueles que mais precisam, continuam a não confiar na capacidade de cada cidadão de decidir onde e em que condições quer que os seus educandos estudem, não sendo, por isso, um verdadeiro sistema de acesso universal. É por este motivo, por exemplo, que um partido como a Iniciativa Liberal defende a liberdade de escolha através de um sistema que coloca o financiamento nas famílias, através da solução do cheque-ensino. Para cada ano de escolaridade, o Ministério determinaria o custo-padrão da aprendizagem por aluno. Cada família teria direito a esse valor para usar numa escola, seja pública ou particular (no caso das particulares que aderissem livremente a esta rede).
Fazendo o exercício de consultar o Orçamento do Estado de 2020, e dividindo a despesa prevista em educação pública – no ensino básico e secundário -, o valor que corresponde a cada aluno matriculado na rede pública em Portugal é de 3829,60 de euros (excluindo ASE e acordos de associação). Se em vez de dividirmos pelos alunos da rede pública, dividirmos por todos os alunos matriculados na rede pública e privada, teríamos 3342,16 de euros. Curiosamente, valores comparáveis com os prestadores privados!
Como se constata, uma medida que é anunciada como um fator de igualdade de acesso ao ensino, é usada como uma forma de agravar diferenças entre a população e de desperdício de recursos escassos, tratando o que é diferente da mesma forma e o que é igual de forma diferente.
Apenas se compreende a gratuitidade dos manuais escolares como uma forma de populismo barato, ao nível do que o atual Governo critica noutros sectores políticos da nossa sociedade, privando, além do mais, quem realmente precisa de ajuda efetiva e justa para que os seus filhos e filhas tenham acesso ao elevador social.
Paradoxalmente, um país que luta com um enorme problema de dívida pública, chegando mesmo a recusar empréstimos da União Europeia com condições muito favoráveis, se não é capaz de dar bom uso aos dinheiros dos nossos impostos, quanto mais aos fundos que aí vêm!
Pelo direito de ter a melhor escola. A escola não pode esperar!
(1) Fonte: Pordata e APEL
(2) Fonte: DGEEC/ME – Observatório das Desigualdades
João Silva de Almeida
Fonte: Observador por indicação de Livresco
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