Com três filhos em casa, a pandemia trouxe muitas mudanças pessoais e profissionais. Por exemplo, só a 13 de Março, na véspera do primeiro estado de emergência, é que Pedro Strecht comprou, pela primeira vez, um smartphone. Antes, o telemóvel — “vintage”, como lhe chamou um jovem doente —, era de teclas e tinha a única função de fazer e receber chamadas. A partir de Março passou a servir para fazer consultas, responder aos pais ou aos filhos, por vezes, a qualquer hora, como se o seu consultório estivesse sempre aberto.
Numa carreira com mais de 25 anos, os jovens mudaram muito?
Mudou a visão das pessoas sobre a saúde mental infantil e juvenil. As pessoas estão mais atentas e dão um peso menos negativo à intervenção do psicólogo ou do pedopsiquiatra.
Perceberam que essa intervenção não é só para “malucos"?
Sim, havia muito a ideia que era para doentes mentais. A Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que uma das principais causas de morbilidade no mundo são a ansiedade e a depressão. Outra coisa que mudou nos últimos anos foi o envolvimento dos pais, há um maior envolvimento do casal. Dantes o que era frequente era ver a criança com a mãe. Hoje, na primeira consulta, estão ambos os pais, mesmo que estejam separados.
E em relação ao tipo de casos que chegam ao consultório?
Recebo casos mais graves.
Porque antes de aqui chegarem, passam pelo psicólogo, que faz uma triagem?
Acho que sim, que há mais redes de triagem. Por exemplo, todas as escolas têm psicólogo, muitos pediatras trabalham com psicólogos, hoje há estruturas de saúde mental que não existiam. Eu apanho casos mais complicados do que há uns anos [apanhava]. As expectativas gerais das pessoas também recaem mais sobre uma resolução muito rápida de problemas. É muito raro termos tempo para fazer seguimento mais regular. As pessoas vêm com a expectativa que vêm aqui e está resolvido.
Uma das mudanças, e que espelha na capa do livro, é que antes não havia telemóveis?
Sim, há 20 anos, os telemóveis estavam a emergir; há dez anos começaram a ter Internet; e hoje em dia, a partir do 2.º ciclo, imensos miúdos têm smartphones. Também já vejo bastantes miúdos do 1.º ciclo com esse objecto.
E isso é bom ou mau?
(Pausa) Tem imensas coisas óptimas e, nesta altura de pandemia, permitiu que as crianças e os jovens se mantivessem em contacto. Este tempo foi muito pesado e, graças a Deus, as redes sociais minimizaram imenso essa ausência. Digo muitas vezes, meio a sério, meio a brincar, o que teria sido desta pandemia com um telefone preto, preso por um fio, no meio da sala.
As redes sociais também têm aspectos negativos?
Trouxeram uma cultura de imagem muito forte e que passa para os miúdos, em idades cada vez mais precoces.
Eles sentem a pressão de terem corpos bonitos, roupas, coisas? Da felicidade?
Como se a vida fosse isso. As pessoas [nas redes sociais] estão sempre a mostrar-se no seu melhor e até mesmo para os adultos pode ser difícil. Os mais novos ficam muito fragilizados porque há uma expectativa muito forte em termos de imagem e da confirmação positiva da imagem — os “likes”. Estão concentrados no “tenho não sei quantos amigos, não sei quantos seguidores” numa rede social, que parece vasta mas que é frágil nas questões de proximidade e profundidade.
Os pais continuam preocupados com as notas e o desempenho escolar?
Há miúdos que estão a começar o ensino secundário e já estão com a angústia do emprego vs. desemprego. Não estou a dizer que não é importante, mas há imensas coisas na vida que se vão fazendo por etapas.
E o que se diz a esses miúdos?
Digo-lhes que é normal, por isso, é que há três anos de secundário. Às vezes, digo-lhes a brincar: “Quando começas a namorar não vais começar a pensar se vais casar pela igreja ou pelo civil, quantos filhos vais ter, que nomes vais escolher...” Esse tipo de pressão externa, colocada pelos pais, nos anos da troika notou-se imenso...
...E agora, com a pandemia, vai sentir-se outra vez?
Sem dúvida. Não estou a dizer que não seja importante [a pressão], mas cada vez mais chamo a atenção para o equilíbrio entre o tempo de trabalho e o tempo de lazer. Imensos problemas somáticos, quer em crianças, quer em adultos, correspondem a situações de burnout, quando a pessoa esgotou física e emocionalmente.
Voltando à pressão de ser feliz...
Ser feliz não é estar sempre bem, é estar bem muitas vezes e noutras é saber dar a volta ao que nos parece mal ou complicado.
Sente que hoje os jovens estão mais ansiosos que há 20 anos precisamente porque sentem a pressão de serem felizes?
Eles precisam de estar sempre up, sempre high, que é uma expectativa que se criou muito desajustada e que, mesmo estando os miúdos bem acabam sempre com a sensação que querem sempre mais. Claro que ainda temos imensa pobreza em Portugal, mas temos miúdos com imensas coisas, só que depois a expectativa, o que chamamos o “ideal do eu”, é tão alta que por muito bem que estejam parece que nada serve. Por exemplo, uma preocupação dos miúdos é com o que os outros pensam. “O que é que os outros vão dizer de mim?”
Mas isso não são só os miúdos, os adultos também. As redes sociais vieram potenciar isso?
Sim, e a ditadura da imagem tem muito a ver com isso, da imagem corporal e a psicológica.
Os smartphones contribuem para que os jovens adoeçam?
Eu mantenho uma certa convicção de base, talvez romantizada, que acho que estamos sempre a progredir e a melhorar. Hoje temos miúdos mais sedentários, mais obesidade infantil, mais hiperactividade, mas também há os que fazem mais desporto, que têm outras actividades. Alguns estão sempre ocupados, há como que um horror ao vazio.
Porque temos medo de estarmos connosco próprios?
Sim. Perdemos a capacidade de estarmos connosco, ouvirmo-nos a nós próprios e também de termos disponibilidade para ouvirmos os outros. O que sinto [da parte das pessoas] é a enorme necessidade que têm de falar porque se sentem sós. As pessoas têm horror ao tempo livre. É preciso que a pessoa admita a si própria que não está bem e deseja mudar. É importante filtrar o que é essencial do que é acessório. Depois, criar uma rotina para fazer o que gosta. É importante darmos esse espaço a nós próprios.
Voltando ao livro, até que ponto os adolescentes não querem ser os modelos que vêem nas redes sociais?
Sem dúvida e é mais inquietante do que as pessoas pensam. Hoje, se calhar mais de 50% dos nossos miúdos está em contacto directo com sites de pornografia, ainda na pré-puberdade. Eles chegam lá facilmente e não têm capacidade física e emocional para perceber que pornografia é diferente de amor. Por exemplo, a facilidade com que eles partilham nudes é preocupante.
Ou seja, as redes influenciam não só a forma como vivem a sua sexualidade, mas também como vivem as relações com os outros?
Sim, relações que na prática são muito distorcidas. Há quase como uma clivagem entre a parte afectiva e a física, sexual-genital. É por isso que muitos adolescentes, no registo social da noite, me dizem que têm de beber para se sentirem mais à-vontade para estar com uma rapariga, como se fosse preciso alterar um estado de consciência. São modelos de relação que se tornaram diferentes. Por isso, digo aos pais que promovam os contactos reais dos miúdos, para convidarem outros para ir a casa.
Os filhos não têm de dizer tudo aos pais, mas o que têm estes últimos de fazer para estabelecer uma relação de confiança?
Ter tempo de partilha. Às vezes estamos a falar de muito pouco, como o jantar em família. Manter um bom nível de comunicação e dar espaço para ouvir. Os pais que estão atentos percebem imenso dos filhos, mesmo que estes não digam nada. Mas às vezes também não percebemos tudo.
No livro fala de como o corpo se pode tornar o espelho das experiências de vida dos jovens e, nesse sentido temos, por um lado a automutilação e por outro as tatuagens.
Essa questão tornou-se galopante. Observo que aumentou muito a transposição para o corpo de marcas psíquicas, como se houvesse uma necessidade de pôr à flor da pele coisas que são marcas psíquicas.
Os jovens fazem tatuagens porque são inseguros?
Sim. O José Gil tem uma expressão que é “inscrição psíquica”, isto é, as coisas boas ficam marcadas dentro de nós e não à superfície, na pele. Ou seja, as coisas que são realmente importantes deixam marca psicologica, nós lembramo-nos delas, sejam boas ou más. Hoje parece que as experiências são muito mais de superfície, parece que não deixam marca, mas, paradoxalmente, as pessoas andam à procura de marcarem mais determinadas vivências nas suas peles. Digo aos pais que, até aos 18 anos, os miúdos não devem fazer marcas que sejam definitivas — podem por um piercing, mas não um alargador porque é irreversível.
Não pode ser uma questão de moda?
Eu acho que é, mas porque é que há modas em determinadas alturas? Porque correspondem a movimentos sociais. Não tenho uma posição crítica no sentido negativo, tenho-a muito mais interessada no ponto de vista de observar as mudanças. Uma outra mudança é os rapazes cuidarem mais deles próprios, fazem um investimento maior neles. Mas continua a haver uma coisa muito pesada, em relação aos rapazes e à sua vivência do corpo que é a dificuldade na expressão dos afectos. As raparigas são mais livres, saem da escola agarradas às outras, aos segredos, mas se dois rapazes o fizerem já podem falar sobre eles. Portanto, os rapazes continuam mais contidos nos afectos. Mas já é mais saudável do que há 20 anos!
Fonte: Público
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