Uma mãe aceitou recordar o momento em que decidiu que o melhor para a sua filha era a esterilização. Oficialmente, foi uma operação ao apêndice. "Nunca quisemos mentir à minha filha. Mas também não podíamos pedir-lhe opinião."
Casei-me com 20 anos, o meu marido com 24. Só tivemos a menina sete anos depois. Foi uma gravidez muito desejada. Não havia ecografias naquele tempo, mas fui acompanhada, estava tudo muito bem — enfim, do 2.º para o 3.º mês tive um aparecimento de menstruação, acredito que foi um sinal. A menina nasceu e tinha problemas: uma perninha mais curta, o pezinho muito prejudicado. Terei tido rubéola durante a gravidez, não tive manifestações físicas, mas a rubéola não perdoa.
Ainda antes dos três anos, ela passou a ter umas manifestações. Deitava a língua de fora e assim. Fomos ao neurologista. Tinha epilepsia. Tinha ataques. E tinha um certo atraso. Se lhe dávamos um recado, e eu dava até de propósito, às vezes, para ver como ela reagia, ela nunca conseguia transmitir o recado até ao fim. Mas era uma criança muito alegre. Foi por causa disso que voltámos a ter música em casa — porque quando ela nasceu o mundo desabou, deixou de haver música. Fizemos tudo para lhe dar um ambiente de normalidade, ela não podia ser vítima do nosso desgosto.
Andava — e anda — com uma prótese. Foi muito intervencionada, muitas operações para tentar aumentar a perna, mas a diferença foi sendo cada vez maior. Sabe ler e escrever, na parte da Matemática é que foi pior. Acabou a 4.ª classe com 16 anos.
Sempre foi muito vigiada. Sempre a fomos buscar e levar a todo o lado. Mas pensámos na eventual necessidade de lhe fazer uma laqueação das trompas depois de um episódio, quando ela tinha à volta de 16 anos: ela tinha umas amigas, foram todas para casa de uma delas, eu tinha dito à mãe de uma das meninas que me avisasse quando fosse para ir buscá-la. Mas não foi assim que aconteceu. Quando fui, ela já não estava.
Fui procurá-la. E o que vejo? Ela a sair de um quintal, numa casa perto da nossa, e um homem. Ele já tinha estado preso por abuso — eu só soube disso depois, mas, mesmo assim, perdi a cabeça. Agarrei nela e fui pô-la a casa e voltei ao homem com um pau na mão. “Só não o mato porque acho que não deu tempo para nada”, disse-lhe. “Ó minha senhora, eu vi que a menina tinha uma prótese.” Eu tremia, tremia. Ficámos assustadíssimos com aquilo, eu e o meu marido. O homem não abusou dela. Mas foi um alerta: e se eu me tenho demorado?
Os meus problemas, as minhas preocupações, têm mais a ver com o futuro da minha filha do que com o passado. Hoje, tenho 78 anos. Ela tem 51. O que vai ser o futuro dela? E naquela altura, quando ela tinha 16 anos, a nossa maior preocupação já era o futuro dela.
Falámos com um médico. Nunca quisemos mentir à nossa filha. Mas também não podíamos pedir-lhe opinião sobre a laqueação das trompas. Não havia na cabeça dela uma construção da necessidade de se fazer aquela operação.
Ela nunca teve obsessão pelo sexo. Dá beijinhos, mão na mão, brincadeiras. Há ali muita ingenuidade, muita falta de saber o que é, como é. Mas aquele homem, que a encontrou no caminho, chamou-a e ela foi, percebe?
A minha filha é como uma criança. Tem 51 anos, mas sempre foi assim. Se ela chega aqui, dá-lhe beijinhos, “meu amigo, minha amiga”, e abraça-a e pergunta-lhe logo se quer ir ao aniversário dela. No autocarro o mesmo: aproxima-se das pessoas, pergunta-lhes o nome, diz-lhes como é que ela se chama, onde mora, tudo. Não tem distância. Não se defende.
Falámos então com o médico: “O que vamos fazer com ela e o que é que vamos dizer-lhe?” Não há como dizer: “Tu não podes ser mãe, não tens condições.” E eu lembrei-me de uma coisa: “Nessa operação podem operá-la ao apêndice. Eu fui operada ao apêndice em criança e estive à morte. A ela, pelo menos, isso já não acontece.” E o médico disse “está bem, vamos fazer isso”. O que ficou oficialmente foi: “operação ao apêndice”, mas fez-se também a laqueação.
A laqueação das trompas da minha filha foi decidida entre nós, com o médico. Foi das decisões mais difíceis que tive que tomar na vida. É a constatação das grandes dificuldades de um filho, sabe? Ninguém aprende a ser pai e mãe, muito menos de um filho destes, e é preciso uma força! Uma força que não sei onde é que se vai buscar. É dramático tomar decisões por eles. Estes casos intermédios de deficiência são os mais difíceis. Ela não é autónoma, mas também não é totalmente desprovida, mas também não é dos casos piores. E mesmo quando pensamos em deixar um filho assim, depois de morrermos... ela dá muito trabalho, tem enurese nocturna, às vezes diurna, anda de cueca-fralda.
Sobre se deve ser um juiz a decidir se se faz uma laqueação ou não, em vez do médico, com a família, não sei... Pode evitar alguns abusos, mas tenho muito má experiência com tribunais. O processo de interdição da minha filha, por exemplo, demorou três anos. Quando decidimos uma interdição é para proteger os nossos filhos, os direitos deles, o património deles, para garantir que é criado um conselho de família... E se morremos, entretanto, quem a protege? Depois há uma enorme distância dos juízes. Muita frieza. Uma enorme falta de conhecimento das questões da deficiência.
Eu não sei o que é isso de fazer algo “contra a vontade” das pessoas. Contra a vontade como? Muitas pessoas com deficiência não têm capacidade para saber as consequências das coisas. Se a minha filha saberia cuidar de um filho? Ela diz que gosta de bebés. Mas é um gostar pela rama, completamente infantil. Qual é a substância de uma maternidade assim? Muitas vezes não se sabe sequer quem é o pai e, se se sabe, é frequentemente alguém que não tem capacidade para assumir. Então, fica para os avós que, muitas vezes, já não têm idade para a responsabilidade de serem de novo “pais” de um bebé.
A minha filha teve namorados, que conhecia na instituição onde ia durante o dia, gostava de andar de mão dada. Algumas vezes disse-me: “Ele deu-me um beijinho na boca.” E eu respondia: “Que bom, filha!” Dizia-lhe: “Filha, namorar é bom, mas casarmo-nos é muito complicado, não queiras.”
Se me tivesse contado que tinha tido uma maior intimidade com alguém, se fosse uma experiência que lhe agradasse, que não tivesse consequências, sinceramente nem eu nem o meu marido éramos pessoas para dizer “ai que horror”. E, com a laqueação, até teria mais possibilidade de usufruir dessa parte da vida, de ter uma relação em que se sentisse bem. A pílula e outros métodos? Pois se a nossa preocupação era podermos desaparecer deste mundo e ela ficar! Tomaria a pílula? Não tomaria? Quem controlaria?
Este não é um assunto de que as famílias falem umas com as outras. Mas por vezes já tenho dito que as famílias dos rapazes com deficiência também deviam preocupar-se com esta questão da gravidez. Só que ainda há esta mentalidade: homem é homem. Até pode gerar vários filhos, mas são os pais das raparigas que devem tomar medidas. Porque se houver um abuso, elas é que são as vítimas.
Fonte: Público
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