Acompanhar um filho com défice cognitivo é uma prova de resistência. Tem de se ser inconformado e exigente em relação à sociedade, todos os dias de todos os anos.
Na aldeia de Zorro, nos arredores de Coimbra, a casa debruça-se sobre o Mondego. Suficientemente perto para ser avistado, o rio aparece recortado pela vegetação, quando Elisabete e os seus três filhos se juntam na varanda, para a fotografia. Ela sorri, com ar de menina - nada parece pesar-lhe. Mas sabe que quem vir a foto olhará de uma forma diferente para uma das três crianças: Diogo, de 13 anos.
Elisabete viu este seu filho, pela primeira vez, já no quarto da maternidade, mais de duas horas depois do parto. Beatriz, hoje com 15 anos, nascera por cesariana, mas a mãe agora estava consciente e ansiosa pelo momento em que colocariam o bebé sobre o seu peito. Não foi assim. O primeiro choro anunciou uma estranha revoada - desapareceram os médicos, que levaram o seu filho; sumiu Paulo, o marido, que assistira ao parto; e quem restou tratou de fugir ao susto e às perguntas de Elisabete.
Quando, finalmente, pousaram Diogo no seu colo, ela observou o rosto redondo do filho, a forma dos seus olhos amendoados, o implante pequenino das orelhas e, guiada pelo olhar dorido do marido, viu o que os médicos tinham percebido mal a criança nascera: "O meu bebé tem trissomia 21", disse. Não foi uma afirmação, mas também não foi uma pergunta: "De repente, fiquei sem chão".
Hoje, Elisabete sabe que "é difícil ser mãe de uma criança "diferente", em Portugal". E, por isso, diz: "Ainda bem que o Diogo é meu". Explica que, "mais do que os outros, os meninos com trissomia 21 precisam de pais que perguntem, que reclamem, que se informem, que exijam, que lutem por condições para que eles desenvolvam ao máximo as suas capacidades". E precisam de pais resistentes - porque é preciso fazer isso todos os dias de todos os anos, sem descanso.
Difíceis primeiros anos
Ela e o marido não eram assim - fizeram-se assim. Na maternidade, assustados e frágeis, não poderiam imaginar que, anos mais tarde, seriam cofundadores de uma organização para a inclusão de todas as crianças com aquela doença genética, a Olhar 21.
Elisabete não se recorda de tudo o que aconteceu após o nascimento de Diogo. Guarda a memória dolorosa do olhar dos outros e de uma enorme solidão. Na aldeia, onde ainda todos se conhecem pelos nomes e tudo se partilha - o bom e o mau -, as pessoas reagiram ao nascimento como a uma morte. Diogo estava sempre doente e a proximidade, na família, de outro bebé, um mês mais novo, tornava gritante o atraso no desenvolvimento do filho, que tardava em gatinhar e andar.
Paulo e Elisabete reagiram às dificuldades com um feroz instinto de proteção, mas só aprenderam a viver a nova realidade quando Diogo foi para o Colégio de Santa Maria, da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental. Ali, encontraram professores, psicólogos, terapeutas e outros pais "que falavam a mesma língua", diz Elisabete.
"Ninguém estranhava que se festejasse os primeiros passos de um rapazinho de seis anos. Cada uma das pequenas conquistas de cada criança era valorizada e todos os dias as educadoras tinham algo de bom para contar sobre todos os meninos. Ali, para além de amados, eram estimulados no sentido de explorarem ao máximo as suas potencialidades. Ensinavam-nos, também, como fazer o mesmo em casa."
Foi uma fase de crescimento - para o Diogo e para os pais, que nos dois primeiros anos do ensino básico teriam de rasgar, todos os dias, o espaço necessário para o desenvolvimento do filho. No início, foi atirado para o fundo da sala de aula, "para não incomodar os outros"; e foi entregue a sucessivas vigilantes sem qualificação, requisitadas pelo Estado ao centro de emprego para aquela "tarefa temporária".
Os obstáculos corresponderam a fases de estagnação ou mesmo de regressão. Já o encontro com profissionais competentes e dedicados representou saltos no desenvolvimento de Diogo, conta a mãe. Começou por reconhecer palavras escritas, primeiro associadas a imagens, depois isoladas; descobriu como construir frases; passou a utilizar também o gesto para comunicar; identificou os números e aprendeu a contar, a somar e a soletrar. Em setembro, muda de escola, dentro do mesmo agrupamento - vai para o 5º ano.
Um rapaz "fácil de amar"
"Já foste à escola nova?" Diogo desvia os olhos da TV, sorri, e acena com a cabeça, a dizer que sim. É invulgarmente alto. Tornou-se num rapaz simpático e meigo, sedutor, "muito fácil de amar", diz a mãe.
Elisabete faz uma pausa e deita um olhar aos três filhos. Diogo - que, tal como os irmãos, tomou um duche e se vestiu sem ajuda, depois de um dia de brincadeira em casa dos avós - volta a olhar para a televisão. Beatriz entretém-se a pintar uma enorme tela, mas está atenta ao que diz a mãe - é a mais protetora, mas também a mais exigente professora de Diogo. Bruno, que tem sete anos e de momento está com os olhos presos num jogo de computador, é, para já, o seu companheiro de brincadeiras. No sossego do fim de uma tarde de Verão, nada parece distinguir aquela de qualquer outra família.
Todos voltam a cabeça, quando o telemóvel toca. É o pai, a ligar de França, onde está há dois meses, por motivos profissionais. Elisabete atende e sorri, como se nada lhe pesasse. Mas diz que nem sempre é assim - às vezes sente-se exausta. Aconteceu há dias: ela disfarçou as lágrimas e Beatriz e Bruno fizeram de conta que não viram. Diogo não sabe o que é isso, disfarçar - aproximou-se da mãe, limpou-lhe a cara molhada com as mãos, sorriu-lhe e abraçou-a.
In: Público via blog Ler para ver
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