sábado, 7 de julho de 2012

A paranóia legislativa

Primeira parte da crónica de Santana Castilho*, publicada no jornal Público do dia 4 de julho, retirada do ProfBlog. Na publicação do texto, foi respeitada a grafia utilizada pelo autor.

Voltámos ao tempo das torrentes de legislação selvagem na Educação. Vale tudo para impor o reformismo louco de Nuno Crato. Menorizar as actividades físicas e desportivas da juventude em idade escolar é intelectualmente retrógrado, factualmente estúpido e pedagogicamente criminoso. Pôr os alunos do 1º ciclo a fazer exames no início do 3º período é demência pedagógica. Que vida terão no 3º período os professores e os alunos que já fizeram exame e já “passaram”? Prolongar por mais um mês o ano-lectivo para os alunos que vão “chumbar”, depois de durante o ano se terem retirado recursos para resolver problemas específicos de aprendizagem, é masoquismo pedagógico. Quem assim decide saberá em que condições chegam ao fim do ano professores e alunos? Pensar em novos “cursos de ensino vocacional” para crianças de nove ou dez anos de idade é darwinismo pedagógico, que anseia pela próxima etapa: ferrá-las no berço. Ordenar aos directores que indiquem a componente lectiva dos seus docentes, de dois a seis de Julho, quando tudo o que é necessário para a calcular não é ainda conhecido, é aldrabice pedagógica.

A última pérola da paranóia normativa do ministro, as metas curriculares para o ensino básico, foi apresentada em conferência de imprensa. Nuno Crato, definitivamente convertido ao “eduquês”, disse que se destinam “a definir com clareza o que se quer que cada aluno aprenda” e que são “objectivos cognitivos muito claros para professores e alunos”. Oh, se são! Tão claros (especialmente para alunos) como se depreende dos nacos que transcrevo, a título de exemplo (os três primeiros de Português e os dois últimos de Educação Visual):

- “Ler pelo menos 45 de 60 pseudo-palavras (sequências de letras que não têm significado mas que poderiam ser palavras em português) monossilábicas, dissilábicas e trissilábicas (em 4 sessões de 15 pseudo-palavras cada). “

- “ Ler corretamente, por minuto, no mínimo 40 palavras de uma lista de palavras de um texto apresentadas quase aleatoriamente”.

- “ Reunir numa sílaba os primeiros fonemas de duas palavras ( por exemplo, “cachorro irritado” --> “Ki”), cometendo poucos erros”.

- “Distinguir características dos vários materiais riscadores…”

- “Reconhecer e articular elementos da Teoria da Gestalt no âmbito da comunicação (continuidade, segregação, semelhança, unidade, proximidade, pregnância e fechamento).”

Gosto particularmente, em matéria de clareza, do “quase aleatoriamente” (julgava eu que ou era aleatoriamente ou sequencialmente e fim de papo) e do “cometendo poucos erros” (dez serão poucos?). Em matéria de erudição desvanecem-me, dado que nos ocupamos do ensino básico, aquela cena do “cachorro irritado”, os “materiais riscadores”, a “pregnância” e o “fechamento”. 

Se quiserem muito mais, sirvam-se. Só para o Português e Matemática são para aí 180 objectivos e só 700 descritores. Fora o resto. É óbvio que meninos e professores agora é que se vão concentrar em tão poucas metas, os primeiros aprendendo como nunca e os segundos ensinando como jamais.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

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