domingo, 8 de julho de 2012

Na Serra da Lousã, há uma quinta terapêutica onde todos têm lugar


Todos os dias, às oito da manhã, Maria Encarnação sai da unidade residencial para pessoas com doença mental, onde vive, em Miranda do Corvo, e às nove já está no Parque Biológico da Serra da Lousã para abrir as portas do Museu da Tanoaria. Há três anos que é responsável pelas visitas guiadas ao museu, onde explica como se fazem as pipas e os barris segundo os métodos tradicionais. "Aqui é o museu da tanoaria", costuma dizer, com voz solene, no início das visitas, aproveitando o primeiro momento em que as crianças que a ouvem estão em silêncio. 

Com quase 60 anos, Maria Encarnação, mais conhecida por todos como Dona Maria, sofre de uma doença mental e é uma das 70 utentes da Associação de Desenvolvimento e Formação Profissional (ADFP) de Miranda do Corvo - uma instituição privada de solidariedade social, sem fins lucrativos - que trabalha no parque biológico. São pessoas com algum tipo de doença mental, deficiência mental ou física ou que vivem em contextos familiares desestruturados, em exclusão social. Mas são estes utentes também que, coordenados por monitores, asseguram todo o funcionamento do parque.

Tratam de todos os animais do parque de vida selvagem e da quinta pedagógica. Cuidam das árvores e dos jardins e trabalham nas oficinas de ofícios tradicionais, produzindo peças ornamentais em vidro, em cerâmica, criando tapetes, consertando calçado. É com eles, também, que os visitantes se cruzam quando andam a passear pela quinta. E no Museu da Tanoaria, é Dona Maria quem os recebe. 

Está há três anos no museu e, até essa altura, pouco ou nada sabia de tanoaria, a arte ancestral que se dedica ao fabrico de pipas e tonéis. Foram os artesãos mais antigos que lhe ensinaram o nome e a função de cada objecto, de cada ferramenta e dos trajes. 

Ela ouviu as histórias com atenção, fixou-as, e hoje conta tudo o que sabe aos visitantes. "Querem que vos conte a histórias dos tanoeiros?", recomeça. "Eles começavam da vossa idade, com 13, 14 anos e iam aprender o ofício. No final, tinham um exame: tinham que fazer uma pipa, depois enchiam-na com água e lançavam-na de um monte abaixo. Se ela se partisse, chumbavam, se chegasse inteira passavam e já eram considerados artesãos", conta.

A unidade residencial onde Maria Encarnação vive destina-se aos utentes que são mais autónomos. Para os mais dependentes, que necessitam de apoio em muitas das tarefas do dia-a-dia - na higiene pessoal ou para se vestirem - existem outras unidades onde são acompanhados por técnicos. 

É para o Parque Biológico da Serra da Lousã que vêm todos os dias e onde têm tarefas para executar e horários para cumprir, sempre adequados às capacidades de cada um. "O que procuramos fazer é apoiar e integrar estas pessoas que são portadoras de alguma forma de incapacidade ou deficiência e proporcionar-lhes actividades terapêuticas, em contacto com a natureza e com os animais", explica Sofia Santos, responsável pela área social e ocupacional do parque biológico.

Projecto nasceu em 1989

O trabalho desenvolvido pelo parque biológico foi distinguido, na semana passada, com o primeiro Prémio de Empreendedorismo Social Damião de Góis, atribuído pelo Instituto Português de Corporate Governance, em parceria com a Embaixada do Reino dos Países Baixos, em Lisboa. O projecto do parque biológico começou a surgir em 1989. No início, na Quinta da Paiva, uma antiga quinta de família, existia apenas um centro hípico, onde alguns utentes da ADFP de Miranda do Corvo tinham aulas de equitação terapêutica. "O que verificámos foi que havia uma excelente relação deles com a natureza e com os animais. Que reagiam muito melhor num ambiente natural como este, onde se sentem bem e mais à vontade", conta Sofia Santos. Por iniciativa da ADFP, em parceria com a Câmara de Miranda do Corvo, a Quinta da Paiva foi-se transformando no Parque Biológico da Serra da Lousã.

Juventino França, com 47 anos "acabados de fazer", é um dos que está desde o início no parque. Veio para a instituição em 1988, quando tinha apenas 24 anos. "Estou aqui há uma vida", conclui. Tem uma deficiência física nas costas que lhe prejudica a postura e que lhe dificulta a execução de várias tarefas. Quando tinha vinte e poucos anos ainda tentou arranjar um trabalho "normal", como costuma dizer, mas nunca conseguiu. Estava em casa, sem nada para fazer. 

"Inicialmente não queria vir para a associação porque pensei que eram só pessoas com deficiência mental e que não me iria integrar. Mas o tempo passava, não conseguia arranjar trabalho, e decidi vir inscrever-me num curso de olaria", recorda. Aprendeu rápido: os oleiros que o ensinaram diziam-lhe que ia demorar anos até saber fazer uma caçoila em barro, mas passados três meses conseguiu fazer a primeira. Hoje é coordenador da oficina de olaria na Quinta da Paiva e trabalha com sete pessoas, a maioria com algum tipo de deficiência mental. A sua tarefa é "saber aproveitar o que cada um tem para dar", apesar de reconhecer que é um trabalho "difícil e desgastante". "Ao nível da linguagem, por exemplo, às vezes sinto falta de determinadas palavras. Porque comunico com eles de uma forma muito simples, ou por gestos, e estou aqui muitas horas por dia. Mas também é muito gratificante. Mesmo que façam algo de muito simples eles sentem o apreço dos outros e ficam bem com eles próprios", reconhece.

No museu de artes e ofícios trabalha Júlio Oliveira, de 33 anos. Ficou paraplégico aos 24 anos por causa de um acidente com um tractor e foi com essa idade que veio para a Quinta da Paiva aprender o ofício de sapateiro. "Se me perguntassem se era isto que queria, que sonhava, não era... Mas gosto de estar aqui, do contacto com natureza e com as pessoas. Vai-se vivendo um dia de cada vez", conta.

Por André Jegundo
In: Público online

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