O Raul era um menino que frequentava o 4.º ano de escolaridade, com algumas retenções pelo meio. Este "caso" nunca tinha chegado até mim.
Um dia, quando fui ao território para dar apoio a Vânia e a Eliana, a professora da sala de aula vizinha abordou-me falando das graves dificuldades de aprendizagem do Raul:
- Não sei mais o que fazer com ele! Já tentei tudo!, dizia-me a professora, angustiada!
Não fiquei indiferente e fui ter com o aluno.
Quando o Raul me viu, senti-lhe o corpo a tremer. Ele não sabia quem eu era.
Perguntei-lhe, ternamente, se me poderia sentar na sua carteira e, muito timidamente, respondeu que sim.
Apresentei-me e disse-lhe que estava ali para o ajudar a ler e escrever melhor.
Ah! Como estavas assustado Raul!
Passei-lhe as mãos pelo cabelo, agarrei-lhe as mãos e expliquei o queria dele. Perguntei-lhe, de seguida, se estava disposto a colaborar. Ele, sem saber o que se estava a passar, respondeu, muito baixinho, que sim.
O Raul falava muito baixinho e fixava-se morosamente no meu rosto! Não achei "normal"!
Lembras-te, Raul?
Foi numa segunda-feira, pedi-te para me descreveres por escrito o teu fim de semana, em jeito de composição. Tremulamente e muito agitado, escreveste apenas três linhas. Observei a tua caligrafia (disgrafia) e os erros ortográficos cometidos. Porém, o que mais me doeu foi a confirmação da tua "dor" ainda por explicar.
Acabando a minha análise, sorri-te e dei-te "os parabéns", preparando-te, assim, para a tarefa seguinte. Pedi-te que lesses o que tinhas escrito. E tu, e tu... não conseguiste, não entendias a tua própria escrita.
Eis quando me perguntaste:
-Não diz nada? Não diz que está mal? Eu sei que sou burro!
Ah, Raul como estas tuas palavras mexeram comigo!
E eu respondi-te:
- Tu não és burro! Ninguém é burro! Nunca mais voltes a dizer isso de ti próprio! Eu vou ajudar-te Raul... eu vou ajudar-te!
Sem nenhuma observação depreciativa ao teu trabalho, sem nenhum comentário negativo, apenas com o meu sorriso, com o poder dos afetos e com a minha " fé" que poderia ajudar-te, ficaste feliz. Reconheci-te o "desespero" na imensa vontade que tinhas em aprender e na tua "não aceitação" em não conseguires estar ao nível dos teus pares.
Peguei na folha e fui-me embora, tinha outros meninos à minha espera... Em casa voltei a analisar "a folha". Não era dislexia com toda a certeza... as dúvidas persistiam...
Li os relatórios dos professores anteriores: "Desinteressado; está sempre na lua; não participa; não faz os trabalhos de casa; alienado..."
Tinha de conhecer a tua mãe! Alguma "coisa" não batia certo! Pedi-lhe que me descrevesse o filho e em "tom triste" reiterou as suas dificuldades de aprendizagem. Perguntei-lhe se o filho tinha tido algum problema de saúde, se o parto fora normal, aquelas perguntas do costume, mas fundamentais.
- Não! Respondeu imediatamente a mãe.
E no meio de tanta pergunta, de tanta ponta solta, a mãe lembrou-se:
- Ah, espere! Lembrei-me agora, ele já foi operado aos ouvidos, mas foi em pequenino! Acrescentou.
Deu-me imediatamente aquele "clique". Perguntei-lhe então se achava que o Raul ouvia bem.
- Acho que sim, embora às vezes eu falo com ele e parece não ouvir, mas é porque é distraído!
(Quero salientar que esta mãe nunca descurou do seu filho. Acompanhava o seu percurso escolar e levava-o frequentemente ao médico de família porque ele se queixava de fortes dores de cabeça.) Aconselhei-a ir o mais rapidamente possível a um otorrino. Que estúpida que fui! Nem me tinha lembrado das barreiras económicas daquela mãe. Mas, lá consegui uma consulta! Eu tinha prometido ao Raul que o iria ajudar e foi o que fiz!
Foi no hospital da cidade que lhe diagnosticaram um nível de audição muito abaixo do normal.
Vês, Raul? Afinal tu nunca foste burro! Como não ouvias, como poderias tu aprender? Nunca foste distraído! E quando te fixavas no rosto das pessoas, não eras "estranho", apenas tentavas fazer a leitura labial!
Começámos a tua "aprendizagem" novamente e hoje já tens o teu curso (CEF). Se assim não fosse, eras mais um a abandonar a escola.
Fiquei tão revoltada com o sistema! Como foi possível aquele menino andar anos a fios sem nunca ninguém ter percebido do seu real problema?!: um nível de audição muito abaixo do "normal".
Imaginem só, caros leitores, o grau de sofrimento silencioso daquela criança ao sentir-se revoltado por não aprender como os outros. Ele não aprendia porque não ouvia. E claro está, que ele nunca teve a perceção que ouvia mal, pois sempre "ouviu" assim.
São estes alguns dos "perigos" de diagnósticos nem sempre bem "diagnosticados" que... deixam marcas irreversíveis, na vida dos nossos filhos!
Manuela Cunha Pereira
In: Educare
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