Não foi em setembro que te conheci... Foi em maio, Isabela.
Recordo, uma vez mais, que estas histórias não são ficção, são o meu testemunho real de todas as minhas vivências enquanto professora do Ensino Especial.
Da janela do meu gabinete observei aquele dia de sol que me encorajou a concentrar-me, ainda que não gostasse, na burocracia habitual.
O sol sempre fez parte da minha vida independentemente do meu estado de espírito. É através dele que chego ilusoriamente perto da clarividência, que me apercebo da fugacidade da vida e do quanto é bom viver independentemente dos momentos maus. Não adianta tentarmos fugir do que nos transtorna, o importante é receber deles a inspiração para anteciparmos situações mais complexas. Quanto mais penso sobre o ser humano e quanto mais o observo mais concluo que a simplicidade é a fonte inesgotável do nosso bem-estar. E pensava... mas afinal, o que é isto do bem-estar? Bem-estar significa não só ter saúde, mas também sentirmo-nos bem connosco e com os outros: gostar de nós para podermos gostar dos outros; promover para depois usufruir de um excelente ambiente de trabalho, sorrir e rir, tudo isto tendo como pano de fundo o respeito pela nossa qualidade e dignidade pessoal/social e familiar.
Perdida nesta desconexão de pensamentos, a minha porta abre-se abruptamente...
E vi-te! Vi-te, sem perceber quem eras. Tal como no caso do André, assustei-me. Não da mesma forma... pior... muito pior. Pior porque os teus gritos eram avassaladores, eram gemidos arrancados das tuas entranhas e todo o teu corpo dançava ao ritmo de uma convulsão...
Agarraste-me os ombros e sacudiste-me, sacudiste-me para eu poder ver "aquilo" que eu jamais poderia ver. Tu vias mas eu não! Era impossível ser visível. E gritavas, gritavas: - Cristo está atrás de si! Eles vão matá-lo!
Recordo-me meticulosamente deste cenário, ainda o guardo com todos os detalhes alucinatórios. Eu, instintivamente, olhei para o local que apontavas. Virei a cabeça mecanicamente e não vi NADA! Simplesmente vi a minha janela.
Foi a minha vez de te agarrar. Tinhas tanta força, mas mesmo assim, consegui sentar-te no almofadão, prendi-te as mãos mas as tuas pernas não paravam de espernear, os teus gritos fizeram-se ouvir naquele andar da escola.
Sem saber, concretamente, o que se estava a passar, mas intuitivamente a pensar que se trataria de um quadro de esquizofrenia, chamei-te para a realidade, fazendo-te perguntas banais como o que tinhas comido, o que tinhas vestido, como te chamavas, em que ano andavas... e tu num sofrimento maior, insistias que vias "Cristo" e que o tinhas de salvar da sua própria crucificação. Após eternos momentos, lá foste tu respondendo às minhas perguntas voltando à normalidade, mas sem me dizeres o teu nome.
Quando entraste no meu gabinete, ias à procura daquela a quem confiaste o teu segredo, a psicóloga... O meu gabinete ficava junto ao dela e como esta não se encontrava lá... chegaste até mim. Há alguns meses que esta especialista intervinha sistematicamente. Quando finalmente chegou, já tu estavas mais calma e vi-vos a afastar. Procurei, mais tarde, a psicóloga, mas esta apelando ao sigilo profissional não confirmou o meu pré-diagnóstico, nem me disse quem eras.
Não satisfeita, na escola procurei-te, tinha necessidade de te ver, não por mera curiosidade, mas sim por preocupação. A escola tinha tantos alunos... nunca ninguém me dissera o teu nome, nem o teu ano de escolaridade, nada... nem mesmo o que se passou no meu gabinete. Como qualquer um de nós ficaria, senti-me angustiada, mas não havia forma de te encontrar. O teu rosto esfumou-se.
Após algum tempo, e estando eu, mais uma vez, "entupida" com papéis, oiço bater à porta.
Eras tu, eras tu... muito calma, com um semblante quase envergonhado, pediste-me desculpa pelo sucedido. Parecias outra pessoa. Eras muito bonita, lembro-me dos teus olhos grandes e expressivos emoldurados por pestanas pretas que te conferiam um olhar seguro.
Eras a Isabela! Que nome bonito!
Não te podia deixar fugir desta vez, Isabela! Sentámo-nos e espontaneamente disseste-me o teu nome, o teu ano de escolaridade - 10.º ano de Artes. Deixei-te falar, tinha receio de te interromper e perder o teu desabafo.
Antes de me confirmares o diagnóstico, desabafaste o quanto para ti era difícil viver. O quanto para ti era incompreensível teres passado de uma adolescente sã para uma adolescente cuja mente era tão imprevisível, ao ponto de se tornar quase inimiga do corpo que habitava. Tinhas medo de ti. Tinhas medo daquilo que poderias fazer a ti própria e sobretudo daquilo que poderias fazer aos outros. Não comandavas a tua mente, os teus medos, o teu sentir.
Teoricamente, já sabias tudo sobre a esquizofrenia e não aceitavas viver entre as espadas do delírio e da alucinação. Sentias-te perseguida, ouvias vozes, vias coisas e tinhas tanta certeza disso. Se vias, se ouvias, não compreendias a desconfiança dos outros perante os teus relatos.
Sofrias por muitas coisas: porque fazias sofrer os teus pais e a tua avó. Eras filha e neta únicas. Sempre presenteaste a tua família com boas notas. Sempre gostaste de aprender coisas novas e inspiradoras, para ti sempre foi fácil tirar boas notas. Disseste-me que às vezes até achavas uma "seca" determinadas matérias, nomeadamente matemática, pois para ti "aquilo" era óbvio de mais.
Sempre foste adepta do teu "espaço", não te revias nos teus pares. Era em casa, no teu "santuário", que te sentias livre. Passavas horas infinitas a pintar, isso sim era a tua vida, a tua libertação. Pintavas telas para muitos classificadas de abstratas, só que para ti em cada uma deles narravas uma história, pedaços da tua vida, pedaços de uma vida rasgada por momentos traídos por episódios psicóticos.
Cada traço, cada cor, cada textura representava parte de ti. Ao pintar eras simplesmente tu, despida de qualquer preconceito.
Passaste a visitar-me voluntariamente e falavas, falavas... achavas que em ti viviam duas Isabelas: a Isabela terrena e a Isabela transcendente.
Um dia pedi-te para ver uma das tuas telas. Estava de facto curiosa. No dia em que isso aconteceu, começaste a descrevê-la pormenorizadamente, com os dedos, como se de pincéis se tratassem e foste acompanhando os traços, as cores, as texturas, à medida que falavas. As tuas telas representavam a tua viagem nunca viajada. Para ti, elas eram como um puzzle, cada peça no seu lugar, encaixadas entre si, todavia, na tua história, a peça final assinalava sempre um final, não trágico, mas infeliz.
Todavia, à medida que os teus pesadelos, as tuas visões, as vozes que ouvias, se tornavam mais recorrentes e mais frequentes e... tão reais, deixaste de distinguir a realidade do imaginário. Perdeste o interesse por tudo.
Um dia rasgaste as tuas telas. Elas passaram a simbolizar o teu mundo... aquele que não querias ser! Tinhas medo de falar. Aquilo "não era normal", tinhas medo de perder a tua sanidade mental. Contudo, os teus pais que estavam atentos à tua estranheza e atentos à tua resistência para ires ao médico foram implacáveis e levaram-te ao engano.
Foi-te diagnosticada esquizofrenia juvenil. Foste internada. Odiaste aquele diagnóstico, "aquele mundo que representava", não te revias naquelas pessoas tão diferentes de ti. Na tua cabeça bombeava a palavra "esquizofrenia, esquizofrenia, esquizofrenia..."
Naquele dia, vieste ao meu gabinete, para te despedires, despedires de uma pessoa desconhecida.
Ias ser novamente internada e decidiste deixar a escola. Só querias voltar para o teu "santuário", só este espaço te dava a segurança e te protegia dos outros. Sentiste novamente o apelo da pintura... agora só querias voltar às tuas telas... às tuas telas...
Como se "elas" te pudessem salvar... Querias, no teu imaginário, pintar a tua história, com a esperança que desta vez, o traço ditasse um final, o teu final: Um final feliz!
Onde estarás hoje, Isabela?
Manuela Cunha Pereira
In: Educare
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