sexta-feira, 7 de março de 2025

Há "casos de crianças marcadas com unhas na carne até sangrar": docentes de Educação Especial no Monte da Caparica apresentam escusa de responsabilidade

Alegam falta de meios materiais e humanos para desenvolverem o trabalho com crianças do espectro do autismo. Em salas onde deviam estar seis crianças para dois professores e dois assistentes operacionais, estão onze. Em causa, pode estar a qualidade do trabalho, mas também a segurança de alunos e profissionais

Os professores de Educação Especial do Agrupamento de Escolas do Monte da Caparica, em Almada, apresentaram um pedido de escusa de responsabilidades à direção. Dizem não ser capaz de se responsabilizar pela qualidade do trabalho desenvolvido nas unidades de Estudo Estruturado, com crianças do espectro do autismo, mas também pela segurança de alunos, professores e assistentes operacionais.

“Após reunião extraordinária, depois de sucessivas situações de desgaste e de stress extremo face ao quadro de insuficiência de meios e recursos humanos com que têm trabalhado nos últimos tempos e por considerarem que os seus alunos merecem todas as condições consignadas na Lei, nomeadamente as de segurança, no seu quotidiano escolar, [os professores] elaboraram um documento de escusa de responsabilidade face ao quadro geral vivido por todo este grupo de trabalho na unidade deste agrupamento, que não tem fomentado uma verdadeira inclusão”, pode ler-se no documento, que foi entregue na quarta-feira à tarde à diretora Sandra Vicente.

11 alunos numa sala onde deviam estar seis

Rui Foles, professor de Educação Especial e um dos signatários do documento, especifica à CNN Portugal que, de acordo com a legislação, devem “ter um limite de seis crianças por sala, para duas assistentes operacionais e dois professores”, mas, de acordo com o pedido de escusa de responsabilidade, “na unidade do 1.º ciclo existem 11 alunos com problemática grave de autismo”. “Temos vindo a alertar, nos últimos cinco anos, que o número de alunos nessas salas excede o que diz a lei. Agora agrava-se porque temos falta de professores. São crianças que estão integradas em turmas regulares, mas passam maior parte do tempo nas unidades de ensino estruturado. Crianças com problemáticas graves, não verbais, com grandes dificuldades de regulação emocional e comportamental”, explica.

“Como são mais alunos é mais difícil regular comportamentos. São mais alunos por sala, são mais terapeutas a entrar e a sair das salas, mais assistentes operacionais a entrar e sair das salas, mais professores a entrar e a sair das salas. As crianças veem as suas rotinas alteradas e é mais difícil regular os comportamentos. Além disso, os professores que vêm dar apoio não são os mesmos e as crianças perder os rostos de referência, o que também dificulta essa regulação. Ao desregularem, podem agredir outros colegas, professores e assistentes operacionais”, acrescenta.

As situações de violência têm-se sucedido: “Há casos de crianças marcadas com unhas na carne até sangrar, nódoas negras, mordidas por parte de outros colegas. Uma professora já teve um dente partido. Uma assistente operacional ficou com os óculos partidos”.

“Estes alunos do espetro do autismo não deviam ser encarados como a grande problemática da escola, porque eles não têm culpa. Têm direito a aprender e têm direito a uma educação verdadeiramente inclusiva”, sublinha Rui Foles.

“O cobertor é curto”

Sandra Vicente, diretora do agrupamento, diz-se impotente para resolver a situação. “Tudo o que podia fazer já fiz. O cobertor é curto... quando puxamos para tapar a cabeça destapamos os pés e vice-versa. Já contactei a câmara municipal e o ministério está consciente desta situação”, assegura.

“As unidades têm uma determinada lotação e estão acima da lotação. Algo que não é da competência do agrupamento. Não dá para dividir salas com o mesmo número de professores. Não conseguimos criar mais salas. Estamos com uma taxa de ocupação de 100%. É uma situação grave e que nos preocupa imenso”, reconhece.

Os estabelecimentos do agrupamento são escolas de referência para crianças com o espectro do autismo e todos os anos recebem crianças “que vêm referenciadas por hospitais e instituições da zona”. “Além das crianças que vêm para o agrupamento sem diagnóstico e, uma vez cá, constatamos que também têm de ser referenciadas”, sublinha Sandra Vicente.

“Se as nossas crianças fossem todas funcionais, o problema se calhar nem se colocava. Mas temos crianças que não são funcionais de todo, que passam o dia a gritar, que se agridem a si mesmas e agridem os seus pares, os professores e as assistentes operacionais. A sobrelotação das salas torna-se um problema mais evidente nestes casos”, diz ainda a diretora.

Quatro baixas de longa duração em seis meses

A direção do agrupamento redistribuiu trabalho e atribuiu horas extraordinárias aos docentes. Três professores do grupo aceitaram essa atribuição. Mas os docentes alegam que isso não resolve o problema e só tende a agravá-lo, já que os profissionais desta unidade “estão à beira da exaustão”.

“Desde o início do ano letivo, já são quatro que meteram baixa de longa duração. Temos colegas com burnout e vamos às listas e não temos professores de Educação Especial para os substituir. Há professores a chorar por já não aguentarem estar na unidade. Com as baixas e ausências, temos dias em que temos um professor para 11 alunos”, diz Rui Foles.

A escusa de responsabilidades apresentada esta quarta-feira é assinado apenas por docentes, mas Rui Foles assegura que “os assistentes operacionais estão a fazer o próprio documento, porque também estão no limite”. “Há situações de assistentes operacionais que têm de mudar fraldas e, no caso de crianças que têm aulas em meio aquático, têm de vestir, despir, dar banho… E, se for preciso, os mesmos assistentes operacionais também têm de, ao fim do dia, limpar salas e fazer o resto do trabalho. Além disso, não têm qualquer formação para trabalhar com crianças do espectro do autismo e todos os dias têm de fazer o melhor que sabem com o que aprendem no terreno”, sublinha o docente.

Federação “totalmente solidária” com professores

A Federação Portuguesa do Autismo (FPA) recebeu a carta enviada pelos professores e mostra-se “totalmente solidária” com estes profissionais. “É uma situação grave, do conhecimento que temos. Os professores já nos fizeram chegar várias queixas do que têm passado. Mas não é uma situação única, porque se repete em todo o país. O rácio alunos/professor não é respeitado nesta escola, mas também não é em muitas outras. As associações tem feito referência a isso em seminários e reportado ao Governo”, garante Eduardo Pizarro, presidente da FPA.

“O decreto-lei 54/2018 veio trazer inovação no que respeita à educação inclusiva e à educação para todos. Veio abrir portas a muitas crianças, no sentido daquilo que defendemos que todos aprendem e todos têm direito à Educação. Cada indivíduo aprende de forma singular. Mas continuamos a ter várias queixas e vários pedidos de ajuda durante o ano inteiro. No ano passado tivemos várias queixas de discriminação, de incapacidade de incluir pais, docentes e até o próprio aluno naquilo que diz respeito ao próprio aluno”, diz o responsável.

Eduardo Pizarro lembra que o artigo tem sete anos e continua “por implementar verdadeiramente”. “Sem meios materiais e sem meios humanos, não é possível implementar um decreto que concordamos que não é o ideal, mas é o que temos. Chegando a 2025, a única coisa que sabemos são os relatos que as famílias nos trazem da falta de apoios necessários para as crianças poderem estar nas turmas regulares terem um verdadeiro direito à Educação”, sublinha.

A CNN Portugal contactou também o Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI), que garantiu que a diretora do agrupamento está "a acompanhar a situação e já reuniu com os docentes de modo a, conjuntamente, encontrar as soluções mais adequadas que possam reforçar as respostas a dar aos alunos". O Ministério assegura ainda que a escola "está em articulação com o município de Almada para que, pese embora o rácio estivesse a ser cumprido, possa substituir as assistentes operacionais ausentes por doença".

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