Ricardo era um miúdo irrequieto que, aos cinco anos, dificilmente conseguia concentrar-se ou cumprir uma tarefa até ao fim. Mais complicado ainda, conta o pai, era conseguir «que obedecesse a qualquer ordem dos adultos».
Até que, desesperados, os pais decidiram consultar um psiquiatra. Diagnóstico: hiperatividade e défice de atenção. Tratamento: algumas gotas, várias vezes ao dia, de um fármaco chamado Ritalina – o mais famoso dos três psicoestimulantes comercializados em Portugal e cujo consumo em crianças disparou nos últimos anos.
Segundo dados da consultora IMS Health (...), nos primeiros nove meses deste ano, foram comercializadas nas farmácias quase 164 mil embalagens destes medicamentos, mais 21 mil do que no mesmo período do ano passado. E o aumento tem sido constante nos últimos anos. Em 2011, foram vendidas 203.523 embalagens, quase o dobro das transacionadas quatro anos antes.
Os números estão a preocupar a comunidade médica, que alerta para os perigos do excesso de diagnósticos, e dividem os pais, com alguns a temerem os efeitos de um medicamento que interfere no sistema nervoso central dos filhos durante o crescimento e que causa, entre outros efeitos secundários, a perda de apetite e a dificuldade em adormecer. Aliás, muitos decidem mesmo não seguir as recomendações médicas.
Foi o caso dos pais de Ricardo que, há um ano, optaram por experimentar outras terapias. «Com a Ritalina, ele começou a ter tiques. Mexia constantemente no nariz e balançava-se em onda», lembra António, o pai, explicando que a falta de apetite tinha-se tornado outro obstáculo. Além disso, acrescenta, «a personalidade dele também mudou, tornou-se mais apático».
Até agora, a experiência de lidar com um filho «mais difícil» que as duas irmãs mais velhas, sem medicação, «está a correr bem»: «No quinto ano, o Ricardo teve alguns cincos e vários quatros, conseguiu ter notas medianas». Quanto ao comportamento, ainda está longe de ser perfeito: «Continua a ter dificuldade em lidar com ordens e tivemos de estabelecer regras muito definidas, ajudá-lo a treinar o traço, a lidar com a frustração. Tem de ser um dia de cada vez».
Cem mil hiperativos
Ricardo, hoje com 11 anos, é uma das 100 mil crianças portuguesas em idade escolar diagnosticadas com hiperatividade e défice de atenção (o número de rapazes sinalizados é quatro vezes superior ao das raparigas), segundo dados da Associação Portuguesa da Criança Hiperativa.
Grande parte estará medicada com o metilfenidato, o princípio ativo do medicamento indicado nestas situações e que, em Portugal, é comercializado sob os nomes de Ritalina, de Conserta e de Rubinefe. «Apenas metade destas crianças sofre do distúrbio. Diria 50 mil, no máximo», avisa a presidente e fundadora da associação, Linda Serrão.
Mãe de três crianças hiperativas– e que cresceram a tomar os três fármacos que atuam de formas diferentes no organismo –, Linda Serrão conhece bem os métodos de tratamento disponíveis em Portugal e a evolução dos números nos últimos anos. E é peremptória: «Há demasiadas más avaliações. Muitas crianças têm outros problemas, como a dislexia, por exemplo, e são diagnosticadas com hiperatividade, e muitas outras são hiperativas e nunca chegam a ser diagnosticadas. Isto é muito preocupante».
A dificuldade na avaliação da doença é, aliás, um dos problemas apontados pelos especialistas que falam numa «epidemia de hiperatividade»: «Passa-se o mesmo do que com as depressões. Se as pessoas estão tristes, a tendência é para apontar logo para uma depressão», avisa Fernando Santos, diretor do serviço de pedopsiquiatria do Hospital da Luz, em Lisboa.
A questão, explica o médico, é que «não há nenhum exame que determine se a criança é hiperativa ou se tem outro problema».
Daí que seja «fundamental excluir outros distúrbios com sintomas semelhantes, como é o caso da depressão ou de traumas por que a criança passe, como um divórcio, que também provocam agitação, por exemplo», acrescenta o especialista.
A cautela no diagnóstico é sublinhada pelos vários especialistas. Mónica Pinto, pediatra do neurodesenvolvimento do Centro Diferenças, especializado neste tipo de distúrbios, defende que «deve haver um grande cuidado na avaliação», especialmente nas «crianças em idade pré-escolar [altura em que se faz a maior parte dos diagnósticos], uma vez que há crianças agitadas que aos 6-7 anos normalizam e não precisam de medicação».
Para a médica, o aumento dos casos diagnosticados tem uma justificação: «Houve um período em que a hiperatividade foi a ‘doença da moda’». Por isso, avisa: «Devem primeiro esgotar-se outras formas de intervenção».
Consumo controverso
O facto de o consumo destes medicamentos ser controverso tem criado conflitos nas próprias famílias. Nuno, pai divorciado de um rapaz de 12 anos, tem dificuldades em lidar com a decisão da mãe de dar Ritalina ao filho, apesar da sua oposição. «Há três anos, achou que ele andava muito nervoso, agitado, que tirava más notas», conta, considerando ser fácil perceber o motivo da agitação: «Foi pouco depois de nos separarmos!».
Mas a pedopsiquiatra concordou com mãe e diagnosticou ao menor hiperatividade e défice de atenção numa fase ligeira. Desde então, Tomás faz tratamentos diários com as famosas gotas. Mesmo no tempo em que está com o pai, o tratamento não é interrompido.
Nuno vive cheio de dúvidas e medo dos efeitos da Ritalina a longo prazo. «Ele fica demasiado parado, não parece o mesmo», lamenta. E, acrescenta, «custa-me estar a dar-lhe estas coisas tão novo, que interferem no sistema nervoso».
Os médicos, porém, garantem que estes psicoestimulantes não deixam sequelas no crescimento. Mas admitem outros efeitos. «Há a possibilidade de comprometer em um ou dois centímetros a estatura final em alguns casos», diz a pediatra Mónica Pinto.
In: Sol online
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