Ainda era um jovem professor e já a dúvida o atormentava... Talvez por ser o mais jovem - e considerado inexperiente - confiaram-lhe a turma mais pequena da escola. Porém, certo dia, recebeu a visita da senhora diretora. Vinha acompanhada por um moço, que andaria aí pelos treze anos. E logo foi dizendo:
O senhor professor é um privilegiado! A sua turma só tem quarenta e oito alunos, mas trago-lhe mais um, que lhe vai dar mais trabalho do que a turma toda junta. E já o aviso: o moço é autista e é perigoso.
Naquele tempo, ninguém usava o termo "inclusão", nem expressões como "aluno com necessidades especiais". Muito menos tinha sido inventado o TDA, o DDA, o TDA-H, a Ritalina não estava na moda, nem se reconhecia haver o que, hoje, se designa por hipercinético... Naquele tempo, o moço era deficiente. E pronto!
Naquele tempo, em plena ditadura, ninguém ouvira falar de um russo chamado Vigotsky, que discordava de um tal de Piaget, porque esse tal de Piaget dizia que o desenvolvimento do pensamento na criança "parte do pensamento autístico não verbal à fala socializada e ao pensamento lógico, através do pensamento e da fala egocêntricos". Naquele tempo, vivíamos na mais escura treva teórica.
O jovem professor recorreu ao dicionário: "autismo é uma disfunção global do desenvolvimento". Ficou a perceber o mesmo... Agarrou-se à tábua salvadora do processo que acompanhava o aluno. Nele dizia que o autista havia arrancado os brincos da professora e que, nesse violento gesto, tinha rasgado as orelhas da mestra, que fora receber tratamento hospitalar. O processo só não dizia por que razão o "autista" arriscara o tresloucado gesto. Somente acrescentava que, consumado o delito, o aluno fora expulso.
Aquele jovem professor não era daqueles que cedo desistem de aprender. Com a informação de que dispunha (nenhuma), meteu mãos à obra. No dia seguinte, dividiu o quadro negro em quatro partes e em cada uma delas escreveu tarefas para cada série. Coisa de demorar uma meia hora a fazer. Posta a classe em ação, dirigiu-se para o fundo da sala, onde o autista se instalara.
Quando já estava a menos de alguns passos do "autista", prudentemente, deteve-se. O "autista" balançava a cabeça e isso talvez não augurasse algo bom... Recordou o aviso da senhora diretora: "este aluno é autista e é perigoso". O jovem professor recuou. A situação repetiu-se, vezes sem conta, ao longo desse dia: a cada aproximação, novo movimento pendular da cabeça do "autista"; a cada arremetida, novo estratégico recuo. E o professor regressou a casa, preocupado. Não conseguira chegar sequer à fala com o "aluno especial", ou de "inclusão", como, hoje, seria designado . Muito menos conseguiu ensinar-lhe algo, enquanto durou o que restava daquele ano letivo.
Muitos anos decorridos sobre este incidente, o professor, já menos jovem e com algumas noções de prática teorizada, compreendeu que aquele aluno nunca tinha sido autista. Apenas lhe tinham colocado um rótulo. Aliás, compreendeu algo bem mais importante e decisivo para a tomada de decisões que, alguns anos depois, o conduziram a uma profunda mudança na sua prática. Há quarenta anos atrás, o professor compreendeu que, na sua sala, não havia um "autista" - havia tido quarenta e nove. Ou melhor: seriam cinquenta os "autistas". Porque, dentro das quatro paredes da "sua sala de aula", todos estavam... sozinhos.
José Pacheco
In: Educare
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