A Educação Especial, em Portugal, atravessa, actualmente, um processo de mudança sobretudo a partir da publicação do Decreto-Lei 3/2008. Este facto, em si, não é novo, na medida em que tem acontecido com frequência. Deve até ressalvar-se que, em muitas situações, as alterações neste domínio têm assumido um carácter de pioneirismo que depois alastra a outras áreas. Portanto, à partida, nada a estranhar. No entanto, a dúvida instala-se em saber se, desta vez, a mudança vem no sentido do aprofundamento e consolidação das boas práticas existentes ou representa, pelo contrário, um retrocesso face a esse mesmo percurso.
Da revisão do Decreto-Lei 319/91
Parece evidente que, do ponto de vista legislativo, o Decreto-lei 319/91 precisava de ser revisto. Não somente pela sua “idade” mas, sobretudo porque a realidade, no terreno de actuação nas escolas, colocava novas questões que nele não encontravam solução. Convém recordar, porém, antes da sua passagem ao “reino do esquecimento” que, na altura da sua publicação, ele se mostrou de grande utilidade e com um espírito muito inovador. Com efeito, apesar das equipas de apoio à integração, no âmbito do Ministério da Educação, já desenvolverem trabalho específico, desde 1975/76, ainda se mantinha, em 1991, uma lacuna legislativa sobre o seu campo de acção. Nesse sentido, a regulamentação do apoio aos alunos com Necessidades Educativas Especiais (NEE), então feita, representou um grande avanço no campo da Educação Especial, legitimando práticas existentes e possibilitando a emergência de novas formas de atendimento. O reconhecimento da sua importância no contexto da época, não impede, contudo, que se lhe apontem várias omissões, contradições e ambiguidades. Por exemplo, permitiu consolidar a permanência dos alunos com NEE na escola regular, mas ao não explicitar a integração como um direito indiscutível das crianças manteve a sua aceitação no âmbito do livre arbítrio de cada escola. Este facto talvez se compreenda pela existência de algum excessivo “optimismo pedagógico”, dominante no discurso da Educação Especial, nos finais da década de 80, que acreditava na transformação da escola regular, enquanto sistema, a partir do aumento do número de alunos com NEE integrados, o que se veio a verificar ser irrealista.
De salientar, ainda, a introdução legislativa do conceito de NEE. Contudo, a sua pouca clarificação possibilitou que, na prática, tivesse um cariz demasiado abrangente, envolvendo uma população muito diversificada. De repente, a Educação Especial passou a ser vista como a única alternativa para todas as situações de diversidade dentro da escola, pelo que qualquer criança que fugisse à “norma” para lá era encaminhada. Este alargamento do campo de actuação e o acréscimo significativo de alunos apoiados levou, por vezes, à criação de respostas educativas menos adequadas. Este conjunto de factores tornava, por conseguinte, imprescindível, uma nova legislação que aliás viria a ser objecto de várias propostas por diferentes governos.
As mudanças
Finalmente, foi publicado, em Janeiro, o Decreto-Lei 3/2008 e, com ele, abriu-se um novo quadro conceptual com reflexos na intervenção nas escolas. Apesar dos seus vários aspectos positivos não pode deixar de se considerar que, neste diploma, existem múltiplas perspectivas de retrocesso do percurso da educação especial.Uma delas tem a ver com a “redefinição” do conceito de NEE, na sequência do que já fora disposto no Decreto-Lei 6/2001. Assim, pode ler-se no artigo 1º, que os apoios especializados visam responder às “necessidades educativas especiais dos alunos com limitações significativas ao nível da actividade e da participação num ou vários domínios de vida, decorrentes de alterações funcionais e estruturais, de carácter permanente, resultando em dificuldades continuadas ao nível da comunicação, da aprendizagem, da mobilidade, da autonomia, do relacionamento interpessoal e da participação social”. Esta definição levou ao entendimento geral da sua restrição a alunos com deficiência diagnosticada. Ora, devemos relembrar que o conceito de NEE, tal como surgiu no Warnock Report, apontava para a ultrapassagem de modelos médicos como determinantes do funcionamento dos sujeitos e para a consciência do papel determinante do envolvimento escolar, social e comunitário nas necessidades do sujeito. Por outras palavras, a necessidade não era intrínseca, mas sim construída socialmente.
Parece, agora, retornar-se à ideia de uma educação especial centrada no défice em que existe uma maior preocupação com a intervenção especializada de remediação ou compensação dos alunos, em detrimento das mudanças do contexto. Ao fazer-se isto, está-se a incorrer, em nossa opinião, em dois erros crassos. Um deles, é não ter em conta que as respostas na educação especial têm de estar profundamente imbricadas nas transformações da escola regular, em especial com aquilo que tem de ser feito nos contextos de sala de aula, no sentido de se criarem processos de diferenciação curricular que permitam atender, de forma positiva, toda a diversidade existente. O outro erro deriva da “exclusão” de um conjunto assinalável de alunos que tendo, embora, NEE não são considerados para efeitos de intervenção da educação especial. Tal facto poderia até não merecer total reparo, se fossem criadas outras formas de atendimento. Ora, a observação da realidade permite-nos entender que os denominados “apoios educativos” nas escolas não conseguem, face à sua organização cumprir tais funções. Fica-se, assim, com um “baldio pedagógico” que ninguém quer assumir.
Um outro aspecto extremamente controverso desta legislação é a utilização na elaboração do relatório técnico-pedagógico dos “resultados decorrentes da avaliação, obtidos por referência à Classificação Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), da Organização Mundial de Saúde”. Esta situação mereceu forte contestação de vários especialistas da área, que realçam, entre outros, o facto da aplicação deste instrumento como critério de avaliação das NEE ser “um equívoco”. De facto, a utilização, no terreno da educação, de um instrumento elaborado para o âmbito da saúde, está apenas a servir como forma de legitimar a separação entre alunos com e sem deficiência, o que vem contrariar toda a tendência registada anteriormente na educação especial. Esta aplicação tem permitido, também, de uma forma administrativa, reduzir o número de alunos elegíveis aproximando-os do valor de referência de 2% por agrupamento.
Claro que não se discute, aqui, a qualidade e/ou validade da CIF bem como a necessidade de avaliações adequadas que ultrapassem uma mera despistagem por “olhómetro”. O que se questiona é a sua aplicação neste contexto. A centração neste instrumento, numa busca excessiva de catalogação, apenas agrava os efeitos negativos da rotulação com diminutos ganhos para a intervenção. Por outro lado, parece-nos fortemente discutível o comprometimento legislativo, para o futuro, com um instrumento que, na sua versão para crianças e jovens, não foi, ainda, totalmente completado, adequado e testado.
Este novo diploma aponta, ainda, para a criação de escolas de referência para alunos cegos, surdos, com multideficiência e com perturbações do espectro do autismo. Não se ignora o carácter positivo que pode advir da concentração de recursos especializados e, até, a impossibilidade da sua dispersão por múltiplos contextos. No entanto, não se pode deixar de fazer algumas observações. A concentração de alunos vai conduzir, em muitas situações, ao seu desenraizamento familiar e comunitário que, não convém esquecer, sempre foi um dos pontos apontados como negativos às escolas especiais. A isto devemos acrescer a não existência de redes de apoio logístico (habitacional e de transportes) que minimize alguns desses transtornos. Por outro lado, há que ter em conta o funcionamento das escolas que passam a integrar a rede de referência, devendo avaliar-se, convenientemente, os efeitos que daí decorrem de modo a não se transformarem em sistemas paralelos sem ligação e envolvência.
Em jeito de (in)conclusão
O pouco tempo decorrido desde a publicação do Decreto-Lei 3/2008, de 7 de Janeiro, não permite, ainda, retirar conclusões definitivas sobre os seus efeitos. Contudo, a sua formulação e as práticas de alguns sectores, fazem antever a probabilidade de que ele, mais do que instrumento para práticas inovadoras, configure e legitime um retrocesso na Educação especial.
Carlos Afonso