Foi em 2019 que pela primeira vez me apercebi do cenário preocupante que se avizinhava.
Recebi na Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) um pedido de dados do Conselho Nacional de Educação (CNE), que queria fazer uma análise sobre o envelhecimento do corpo docente das escolas públicas e dos seus possíveis impactos.
Nessa altura ainda os concursos para contratação de docentes deixavam milhares de profissionais de fora e a mensagem que passava era de que tínhamos demasiados professores face aos pedidos apresentados pelas escolas. Por esse motivo, os dados solicitados pelo CNE focavam-se, principalmente, no confronto entre as previsões de aposentação e as bolsas de professores profissionalizados que, ano após ano, se apresentavam a concurso.
Em paralelo, interessava também recolher os números dos novos diplomados nos mestrados de formação de professores.
Foi aí que que se tornou evidente, pela primeira vez, o cenário (bem preocupante!...) que iríamos enfrentar. O número de inscritos nos mestrados de ensino de disciplinas específicas estava a cair a pique e as faculdades de ciências básicas e as faculdades de letras tinham virado a agulha: passaram a dedicar-se quase exclusivamente à investigação e à docência nas suas áreas core e deixaram de ter aquele vasto grupo de recursos que, tradicionalmente, alocavam à preparação e acompanhamento dos futuros professores.
Conheci bem a realidade pré-Bolonha e conheço bem a realidade atual porque sou filha de uma dessas faculdades. O ensino, acompanhamento e orientação dos candidatos a futuros professores obrigava à alocação de uma muito significativa fatia de recursos (humanos e físicos) por parte das instituições.
Havia uma “capacidade instalada” nas instituições para o fazer. Neste momento não há e esse é, a meu ver, um dos mais difíceis problemas a resolver.
Difícil porque terá algum peso do ponto de vista financeiro, no global do ensino superior, mas sobretudo pelo que irá obrigar a reestruturar no seio de pouco mais de meia dúzia de faculdades. Passemos a alguns números e gráficos que nos ajudem a quantificar o esforço que o país terá de fazer para dar resposta à escassez de professores.
A base para os números da antecipação de necessidades de novos professores é o estudo detalhado que o Ministério da Educação encomendou, em 2020, à equipa de investigadores da Nova SBE liderada por Luís Catela Nunes.
Nele interligam-se as projeções de aposentações com as projeções de alunos, e com isso cenariza-se o número de novas contratações a fazer a curto e a médio prazo. Mais uma vez manteremos aqui o foco nos oito grupos disciplinares que constam da tabela abaixo, por serem aqueles com dados históricos de maior expressão na formação inicial de professores[1].
Gráfico: Professores necessários por grupo disciplinar (estimativa)
Fonte: “Estudo de diagnóstico de necessidades docentes de 2021 a 2030”, Tabela 6 (DGEEC 2021) e cálculos próprios.
Já para os números dos novos professores, mais precisamente, dos diplomados nos mestrados em ensino, cuja fonte é a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) e com série histórica integrada na base de dados Pordata, a evolução entre 2003 e 2022 mostra o seguinte:
Gráfico: Diplomados nos mestrados em ensino
Fonte: DGEEC, PORDATA
Os dados registados nas duas tabelas acima tornam ainda mais patente o fosso entre a oferta e a procura, e mostram, ainda, como caiu a pique a formação de novos professores num curto espaço de 15 anos.
Isso mesmo se observa nos gráficos seguintes, pois importa perceber quantos professores serão necessários e quantos se formavam no passado e atualmente.
Gráfico: Quantos professores serão necessários, quantos se formavam no início do milénio e quantos se formam atualmente
Fonte: DGEEC, PORDATA
Fonte: DGEEC, PORDATA
Apetece dizer «palavras, para quê?» Mas indo por pontos:
- No global dos grupos de recrutamento para os níveis de ensino abaixo do 3.º ciclo, isto é, da educação pré-escolar até ao final do 2.º ciclo, a formação de novos professores era, entre 2003 e 2007, largamente excedentária (o que não significa que não houvesse défice num ou noutro grupo em particular).
- Os anos recentes revelam uma quebra para cerca de um quinto mas, para já, não deverá colocar em causa a substituição dos professores que se estão a reformar. O aumento das entradas nas licenciaturas oferecidas pelas escolas superiores de educação vem reforçar esta previsão de alinhamento.
- é nos grupos disciplinares destinados à lecionação das disciplinas do 3.º ciclo e secundário que está o verdadeiro nó górdio. Dos sete que aqui estão a ser considerados não há nenhum em que a formação corresponda a pelo menos metade das necessidades.
- O cenário menos mau está no grupo que envolve as disciplinas de História e de Geografia (que até aumentou face ao período 2003-2007) que está a formar menos de 40% do que seria desejável.
- Quanto aos restantes grupos disciplinares, o número de novos professores é de tal modo diminuto face ao necessário que nem justifica estar a traduzir em percentagens. É quase como se estivéssemos a arrancar do zero! …
Quantos docentes serão necessários para formar estes novos professores?
Por isso, não resta qualquer dúvida de que as faculdades de ciências e de letras (e o Instituto de Educação da Universidade de Lisboa) terão de reforçar os recursos a alocar a esta nova missão nacional!
Não sendo credível que venham a fazer cair os mestrados que foram consolidando durante as últimas duas décadas, serão necessários mais docentes para o ensino superior.
Com a atual estrutura curricular dos mestrados em ensino, os cálculos aproximados não são muito difíceis de fazer[2]: para cada par de turmas (com 20 alunos cada), uma de 1.º ano e outra de 2.º ano, será necessário contar com cerca de 6 horários completos.
Peguemos então no ensino da Física e Química, por exemplo, e coloquemos como objetivo diplomar anualmente 170 novos professores a partir de 2026.
Para esse efeito, e antecipando algum abandono, vamos considerar 10 turmas de 1.º ano e outras tantas de 2.º ano (assim haja candidatos …) para as quais seriam então necessários o equivalente a 60 docentes do ensino superior.
Repetindo o raciocínio para os restantes seis grupos disciplinares, o total atinge um número perto dos 470, isto admitindo que não há muita dispersão e que se conseguem formar sempre turmas completas.
Retirando o «equivalente» e passando para os professores realmente envolvidos, o número poderá ser muito maior, pois muitos terão à sua responsabilidade disciplinas de outros cursos, e isso obriga a um esforço de coordenação que também há que ter em conta.
No entanto, em termos do total de recursos adicionais necessários, este representa apenas 1,5% do total de docentes do ensino superior público (30.372 no ano letivo 2021/22).
Um olhar agora para quais são as casas que têm vindo a abrir mestrados de ensino nestas áreas e que, naturalmente, serão os principais alvos deste esforço adicional:
Gráfico: Quantos mestres em ensino estão a ser formados nas universidades[3]
Fonte: DGEEC
Ressaltam os números das faculdades de letras das universidades do Porto e de Coimbra e os do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, responsável por todos os mestrados em ensino da Universidade de Lisboa, à exceção do mestrado em ensino de Geografia (do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território).
O puzzle não fica completo sem avaliarmos a “matéria prima” principal. Pragmaticamente, e admitindo que se consegue passar a mensagem de que esta é uma profissão atrativa e com futuro, estamos ou não a formar, em número suficiente, os licenciados que cumprem os requisitos para entrar nestes mestrados? A resposta é “não” para dois dos grupos disciplinares – “Biologia e Geologia” e “Física e Química”.
Replico um excerto do anexo do Decreto-Lei n.º 80-A/2023, de 6 de setembro, para se entender melhor qual é aqui a questão. Este Decreto-Lei “procede à definição dos requisitos mínimos de formação científica adequada às áreas disciplinares dos diferentes grupos de recrutamento para seleção de docentes titulares de cursos pós-Bolonha em procedimentos de contratação”, ou seja, define os requisitos mínimos para os licenciados pós-Bolonha terem habilitação própria. Esses requisitos coincidem com os do acesso aos mestrados correspondentes.
Gráfico: Requisitos mínimos para a formação de professores
Requisitos mínimos para as áreas disciplinares de recrutamento para seleção de docentes, definidos no anexo do Decreto-Lei n.º 80-A/2023, de 6 de setembro
Admitindo que os licenciados pelas faculdades de letras nas áreas da Literatura e Linguística e da Aprendizagem de Línguas detêm créditos suficientes de Português, o que os dados publicados pela DGEEC mostram é que haverá nesta disciplina mais de 1000 licenciados nos últimos dois anos a verificar os requisitos. Na área da História e da Arqueologia licenciaram-se mais de 700 nos últimos dois anos, em Filosofia licenciaram-se mais de 200, em Geografia quase 500 e em Matemática mais de 800. Mesmo atendendo à elevada empregabilidade dos matemáticos, eu diria que há aqui uma boa margem de recrutamento para os mestrados em ensino.
Onde não há de todo licenciados que verifiquem os requisitos é para Física e Química. Os que estão mais próximo são os das licenciaturas em Física ou em Química com minor na área complementar. Nos últimos 2 anos temos um brilhante total de 20 licenciados. Para Biologia e Geologia a situação não é tão grave porque há alguma oferta de licenciaturas para o conjunto das duas áreas (nas universidades de Aveiro, do Minho e de Trás-os-Montes e Alto Douro), onde se diplomaram 89 alunos nos últimos dois anos.
Em resumo, perante a emergência da escassez anunciada de professores, alguns passos vão sendo dados. Destaco dois: o Decreto-Lei da habilitação própria para os licenciados pós-Bolonha e o índice salarial por que estão abrangidos. O índice é o 167 (1.536,90 euros ilíquidos) que corresponde a um montante claramente superior ao que se conhece para o salário médio de entrada de um licenciado no mercado de trabalho (1.227 euros, em 2020, de acordo com um estudo recente do Banco de Portugal).
Há ainda bastantes obstáculos a vencer e os números que aqui fui elencando alertam-me para três urgências (outras haverá …): readaptação em tempo record das estruturas do ensino superior que tiveram, no passado, um papel determinante na formação de professores do 3.º ciclo e ensino secundário; lançamento de campanhas de sensibilização junto dos alunos que neste momento se encontram inscritos nas licenciaturas em Física, Química, Biologia e Geologia; e adaptação dos respetivos programas curriculares para que um número significativo destes alunos venham a diplomar-se com os créditos necessários na área complementar e, assim, possam ingressar nos mestrados em ensino.
Setembro de 2023
Notas:
[1] Um grupo também crítico é o da Informática mas os mestrados em ensino nessa área são relativamente recentes.
[2] A estimativa aproximada teve por base o seguinte racional: para cada uma das 13 unidades curriculares de 6 ECTS do plano de estudos dos mestrados em ensino, a referência foi 2/5 de horário docente por turma ou, por outras palavras, cada bloco de 5 turmas necessitará, em média, de 26 docentes para a lecionação das unidades curriculares. Quanto à Iniciação à Prática Letiva, que representa, para o aluno, 40% do tempo de trabalho a dedicar ao curso, a alocação de docentes das instituições de ensino superior para efeitos de acompanhamento e supervisão deverá rondar o correspondente a 1 horário de docente por turma.
[3] não se incluíram a Universidade Católica Portuguesa - Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais; a Universidade da Madeira - Faculdade de Ciências Exatas e da Engenharia; a Universidade de Évora - Escola de Ciências Sociais; a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro - Escola de Ciências Humanas e Sociais; e a Universidade do Algarve - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais porque registaram menos de 10 diplomados nos mestrados aqui em análise.
Luísa Loura
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