domingo, 3 de dezembro de 2023

Deficiência e diversidade. Que caminho já percorreu a inclusão em Portugal?

A voz de Sónia Santos é sempre melodiosa, mesmo quando a empatia falha do lado de lá. Ao telefone, a partir da Câmara Municipal da Marinha Grande (onde trabalha há 7 anos), é ela que atende muitas vezes quem liga para reclamar. E é com a voz que desarma, que acolhe ou encaminha. Porque não vê. Nasceu com uma cegueira congénita, há quase 44 anos, e foi treinando todos os outros sentidos desde pequena. E acabou por ser a voz que transformou em maior aliada, e até em ferramenta de trabalho: era locutora em rádios locais antes de ingressar na autarquia, ao abrigo de um programa do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP).

Continua apaixonada pela rádio, e por isso não admira que dê voz aos anúncios do Município, sempre que é preciso. No verão passado, terminou o mestrado em comunicação acessível e acalenta a esperança de vir a integrar o Gabinete de Comunicação e Imagem da autarquia. Já que nunca exerceu nada compatível com a licenciatura em português/inglês. Nem queria, na verdade, porque o sonho sempre foi o curso de comunicação. Mas nem sempre a inclusão e acessibilidade fez parte do léxico e da prática das instituições em Portugal. "Queria ir para Lisboa, mas barraram-me completamente a entrada. Um dos requisitos eu não preenchia: capacidade de visão". Acabou por se conformar com outro curso, e por ficar no Politécnico de Leiria.

Sónia Santos mora sozinha, faz uma vida "perfeitamente autónoma, dentro das limitações" e na Câmara da Marinha Grande foi bem acolhida pelos colegas e dirigentes, mal entrou no serviço de atendimento telefónico. Nem sempre foi assim e na memória guarda registos de discriminação, noutros trabalhos. "Um dia, numa das rádios onde trabalhei, o diretor perguntou-se se eu sabia mandar um mail", recorda ao DN.

Sónia tem passado a vida a lutar contra as barreiras arquitetónicas. Quando soube da existência do mestrado em comunicação acessível, acreditou que era desenhado para ela. "Nunca quis estagnar. E não é segredo para ninguém que, apesar de fazer com brio o meu trabalho, não é exatamente o que gostaria de fazer na autarquia", afirma. Em termos globais, sustenta que "fala-se muito em inclusão, mas faz-se pouco". É o que sente quando olha para o país, mesmo que "no que respeita às relações interpessoais as coisas já seja muito melhores".

É certo que na Administração Pública e nas autarquias é mais comum encontrar aplicada a lei, já no setor público, a legislação tem obrigado a criar oportunidades. Mas em 2023, os números não eram ainda animadores, pese embora terem passado mais de 20 anos após a aprovação da lei que prevê um sistema de quotas nos concursos públicos: as pessoas que trabalham nos serviços do Estado e que possuem um grau de incapacidade superior a 60% representavam apenas 2,8% dos funcionários, sobretudo inseridos em cargos na jurisdição nos ministérios da Educação e Saúde. De acordo com os últimos dados disponíveis, estão empregadas na Administração Pública 21.329 pessoas com deficiência, num total absoluto de 741.127 postos.

Mais desemprego e mais trabalhadores com deficiência

Na última década o desemprego registado na população com deficiência em Portugal continental aumentou 30%. Mas segundo o último relatório do Observatório de Deficiência e Direitos Humanos em Portugal (ODDH), publicado em 2022, o número de trabalhadores também aumentou. Entre 2011 e 2020 fixou-se nos 58% no setor privado, e 93% no público. Carolina Van-Zeller, da Associação Salvador, tem dúvidas sobre os números em absoluto: "o crescimento verificado pode não representar uma subida de emprego líquido, ou seja, novas contratações. Porque há situações de acomodação de pessoas que já estão nos quadros e adquirem algum tipo de deficiência", explica ao DN.

Desde 2001 que os concursos públicos externos com mais de dez vagas comportam 5% destas reservadas a pessoas com deficiência; ou seja, um posto. De acordo com a atualização da lei n.º 4/2019, de 10 de janeiro, a partir de 1 de fevereiro deste ano as empresas com mais de 250 trabalhadores têm de empregar 2% de pessoas com deficiência na sua força de trabalho, e empresas com 100 a 250 trabalhadores terão de ter 1%. Para as empresas com um número de trabalhadores entre 75 e 100, a lei só entrará em vigor em fevereiro de 2024. E dela ficam excluídas as pequenas e médias empresas.

Consciência inclusiva vem de fora

É verdade que o setor privado Portugal vai dando passos, sobretudo a reboque das multinacionais, onde a inclusão vai muito além das pessoas com deficiência. As associações do setor acreditam que têm sido dados passos importantes nos últimos anos. Provam-no o aumento de empresas e instituições distinguidas pelo IEFP com os prémios "Marca Entidade Empregadora Inclusiva", cuja quarta edição aconteceu no final de novembro.

Faz agora cinco anos que Bruna Barbosa Oliveira ingressou no BNP Paribás, uma das empresas que, em Portugal, mais se destaca pela positiva na inclusão laboral. Mas Bruna, 32 anos, negra e homossexual, só soube disso depois de entrar. "Quando enviei o meu currículo, por sugestão de um colega, nem sequer fazia ideia dessa política do banco", conta ao DN, na semana que a empresa promoveu mais um mercado de emprego inclusivo.

Os dias de Bruna não são todos passados no departamento de risco do banco. Usa muitos deles para falar da causa LGBTIQ+, a cuja comunidade pertence. "Integro alguns projetos do Banco, como os dias da inclusão, na semana da diversidade, e como oradora participo também em diversas ações", explica, mesmo que saiba que essa preocupação da empresa tem, antes de mais, uma estratégia de negócio por trás. Ainda assim, sente-se uma privilegiada, quando fala com outras pessoas da comunidade. "Julgo que é uma marca sobretudo de empresas estrangeiras, que têm mais sensibilidade. A verdade é que os casos de discriminação aqui são levados a sério. Temos inclusive um canal para denunciar quando acontecem", explica ao DN, certa de que seria importante para o mundo laboral português "que as empresas todas tivessem um código de conduta como o nosso". Mas há uma parte da história que não consegue controlar: a discriminação, ainda presente, por parte de alguns colegas. "Começa tudo por ter empatia. E entender que toda a gente necessita de um trabalho, de uma carreira, independentemente das suas opções e da sua condição. Perceber que não é correto construir o mundo só para um tipo de pessoas. E que quando convivemos com pessoas diferentes, isso só nos faz crescer. A todos. Talvez a maioria das pessoas não tenha noção do quão produtivo é, individualmente, estar em sítios com imensa diversidade", conclui.

À distância de centenas de quilómetros, a trabalhar igualmente para o BNP Paribás, também Pedro Veiga Pinto sente esse conforto da inclusão. Nasceu sem parte de uma perna, usa uma prótese para se movimentar, e muitas vezes é convidado a contar a sua experiência em escolas e empresas. Tem agora 31 anos, e ao longo da vida tem transformado a deficiência numa forma de contrariar qualquer adversidade. Já fez muitas missões de voluntariado, em Portugal e no estrangeiro, e dentro do banco criou uma comunidade, a Ability, voltada para as pessoas com deficiência.

Luciana Peres trabalha no banco desde 1997, e por isso assistiu a toda a mudança que incidiu no emprego inclusivo, a partir de 2016, ano em que assumiu a direção das áreas comunicação e responsabilidade social do banco em Portugal. Agora, há dois anos que se dedica em exclusivo à última delas, incidindo particularmente na diversidade, equidade e inclusão. "Isso implica criar uma cultura favorável a todas essas áreas, embora a tónica seja mais vincada na inclusão", explica ao DN. "Porque a partir do momento em que temos um ambiente propiciado por políticas inclusivas, a diversidade vai aparecer", conclui.

Na pequena vila do Luso, no centro do país, é a essa diversidade que a população se está a habituar. Nos últimos anos têm chegado imigrantes. Mais recentemente são sobretudo brasileiros, mas houve uma primeira leva dos países da Europa de leste. Foi nessa altura que chegou Nicusor Talaba, vindo da Roménia, com a promessa de trabalhar na fábrica das águas do Luso. "Cheguei em 2010. Uns amigos já lá trabalhavam, no meu país estava cada vez mais difícil e eu vim", conta ao DN este romeno de 47 anos. Mais tarde juntou-se a ele a mulher, que encontrou trabalho na Rosa Biscoito, o antigo salão de chá do casino do Luso. "Passávamos muito pouco tempo juntos. Então, apareceu a oportunidade de também lá trabalharc e fui", recorda. Hoje é o responsável pelo espaço, na ausência dos proprietários.

"Quando eu não estou, confio totalmente nele", refere Claudemiro Semedo, o empresário da restauração que também é presidente da Junta de Freguesia. Além do romeno Nicosor (a quem chamam Nicolau), há mais imigrantes ali a trabalhar, como é o caso de duas mulheres brasileiras. "Nós precisamos de gente que viva e trabalhe nas nossas aldeias. Só isso as vai impedir de morrer", sublinha o autarca.

"Há organizações pouco sensíveis ao tema da diversidade e da inclusão"

Margarida Mateus, coordenadora de projetos da Associação Portuguesa para a Diversidade e Inclusão (APPDI), considera que "Portugal tem vindo a dar vários passos para se tornar mais inclusivo, encetando esforços no sentido de promover políticas públicas e implementar estratégias de ação de combate à discriminação, e a fomentar a igualdade de oportunidades de vários grupos vulneráveis". Porém, ainda existe um longo percurso a fazer. "As desigualdades sociais no acesso ao mercado de trabalho (mas também à educação, serviços, saúde e habitação) além das várias barreiras ao nível das acessibilidades físicas e digitais, continuam a estar presentes no dia a dia".

Criada em 2018, a APPDI tem como missão promover a Diversidade e a Inclusão nas organizações e na sociedade civil, nomeadamente através da Carta Portuguesa para a Diversidade, que conta atualmente com 467 entidades signatárias, em todo o país. "Esta iniciativa tem como objetivo encorajar as entidades empregadoras a implementar e desenvolver políticas e práticas internas de promoção da diversidade", explica Margarida Mateus, que observa ainda organizações "pouco sensíveis para os temas da Diversidade e Inclusão, onde a pessoa com Deficiência ainda possa ser encarada como um desafio de gestão para a organização e para as equipas. Ainda existem muitos preconceitos e estereótipos associados a estas pessoas, pelo que temos vindo a trabalhar com um conjunto de organizações, no sentido de ajudar a desconstruir estas ideias, de forma a promover processos de contratação e de inclusão mais positivos para as pessoas com deficiência".

"Falta fiscalização na lei das quotas"

Aquilo que noto é que temos cada vez mais solicitações de empresas para apoio nesta área da empregabilidade, seja a nível de sensibilização, formação, identificação de perfis e acompanhamento pós-colocação, por isso acreditamos que cada vez mais empresas estão preocupadas e a trabalhar no tema da inclusão de pessoas com deficiência". Carolina Van Zeller, responsável pela gestão de projetos e apoio ao emprego na Associação Salvador, sente porém que "ainda estamos a dar os primeiros passos". "Sabemos que a Lei é um incrível mote de arranque para obrigar as entidades a olharem para este tema de frente, mas também sabemos que não é uma lei que muda de imediato estigmas, preconceitos, padrões enraizados e culturas organizacionais. Ainda há um longo caminho a fazer", conclui.

Esta responsável aponta por isso a falta de acessibilidades como o maior entrave nesse caminho. Refere à falta de acessibilidade das próprias casas/edifícios onde residem, dos transportes públicos, dos locais de trabalho, e também "falta de flexibilidade para o teletrabalho". "Segundo um questionário promovido pela nossa Associação, ao qual responderam 635 pessoas com deficiência motora espalhadas pelo país todo, as barreiras mais referidas no acesso ao trabalho são: do lado da empresa - a falta de oportunidades (27%), a falta de acessibilidades (14%) e receio na forma como os colaboradores os vão acolher (10%); do lado das pessoas com deficiência motora - a inexistência de transportes (13%), a falta de autoconfiança e autoestima (12%) e a falta de formação ou formação desadequada (10%) ou necessidade de um assistente pessoal (7%)".

"Um passo importante foi a Lei do Sistema de Quotas para Pessoas com Deficiência. Mas falta a fiscalização do cumprimento das quotas, e do cumprimento da lei das acessibilidades", diz.

Fonte: DN por indicação de Livresco

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