Milhares de alunos meses a fio sem professor a pelo menos uma disciplina, ou com constantes substituições dos precários que os ensinam, são sinais preocupantes para as democracias; por cá, tornaram-se indisfarçáveis desde 2017. Como se regista nos EUA, no RU e em vários países europeus (os nórdicos resistiram porque têm classes médias maioritárias e consistentes), é nos territórios com mais problemas sociais ou isolados, ou atingidos pela especulação imobiliária, que cresce a falta de professores.
Aliás, ser professor já só motiva uma minoria interessada na formação em educação básica. É o resultado das reformas neoliberais, sintonizadas com a OCDE, que visaram a sustentabilidade económica dos estados. A forte redução dos orçamentos da educação exigiu políticas de engenharia social que incluíram a descredibilização da escola pública e dos seus professores. Em regra, os governos seleccionaram uma forma de manipulação para popularizar as decisões: destaques mediáticos especulativos das estatísticas do absentismo dos professores e da sua massa salarial.
A bem dizer, Portugal chegou tarde a este processo. Mas acelerou-o a meio da década de 2000. Aplicou a eito, com pouca consistência teórica e sem estudos empíricos, um conjunto de políticas extremistas na carreira dos professores, e na sua avaliação, sustentadas por um modelo autocrático de gestão das escolas. As históricas contestações dos professores (2008 e 2013) - reconhecidas pelas oposições nas campanhas eleitorais, mas "esquecidas" logo que tomaram o poder -, anteciparam a crise vigente.
Acima de tudo, a inacção dos sucessivos governos desconvocou a esperança, instalou o desalento e eliminou a capacidade de contestação dos professores. Mas criou uma casta que se acomodou e que usa um argumentário que suaviza a consciência dos governos.
Para além disso, o marketing partidário manipulou os dados dos resultados dos alunos para certificar o caminho certo. A melhoria no PISA (OCDE), ou a "natural redução do abandono escolar" numa sociedade que se desenvolveu e escolarizou, serviu para discursos oportunistas nivelados pelas contendas sobre os rankings nacionais.
No essencial, as finanças passaram a supervisionar a educação. Como confessou Alexandra Leitão (teve pastas na AP e na Educação) ao Expresso de 19 de Agosto de 2022, "o sistema de avaliação da AP é injusto. Tentei modificá-lo e não consegui. Não houve abertura do Ministério das Finanças. Não vale a pena dizer outra coisa."
De resto, estabeleceu-se um silêncio estrutural sobre uma organização que "adoecia os professores" e os mergulhava num tríptico bem documentado: exaustão, amargura e indignação. Até quem experimentou o exercício, identificou de imediato os procedimentos parciais e arbitrários.
Tudo isto foi fatal. Não só promoveu a fuga dos professores, como transformou as escolas em laboratórios de controlo social e favoráveis ao caciquismo local. Aliás, é já só neste universo que encontramos "dinossauros" a dirigir a mesma escola durante cerca de duas décadas, ou até três ou mais, e que ainda são aplaudidos pela corte do sistema que faz assim tábua rasa da mais elementar ética republicana.
Por isso, a comparação da actualidade com 2010, como fez o actual ministro da Educação, regista a subida do absentismo e da mobilidade por doença sem a necessidade de inundar os leitores com números. Há causas transversais à AP (exaustão, envelhecimento e milhares de aposentações na década de 2020 que os governos ignoraram) e é igualmente consensual o efeito devastador das políticas.
Em suma, as democracias estão numa encruzilhada e aumenta a apreensão com o crescimento das desigualdades educativas e das escolas para ricos.
E antes do mais, sublinhe-se que a aceleração do digital na pandemia demonstrou a imponderabilidade da substituição de professores por máquinas (ou por qualquer modelo de tele-escola) tão desejada pelos ministérios das finanças, pela OCDE e pelas gigantes tecnológicas.
Mas um sinal sonoro da aflição europeia foi dado por Macron: "nenhum professor receberá menos do que 2000 euros líquidos mensais". Por cá, é matéria indiscutível. O debate não abre, nem com as ameaças frequentes de Bruxelas de levar Portugal a "tribunal se não acabar a “discriminação” dos professores contratados" que "auferem sempre o salário mínimo da carreira independentemente do número de anos de serviço" (que pode chegar às duas dezenas). E recorde-se: a carreira em Portugal é a que tem mais travões na AP e os professores são os únicos que não recuperaram a totalidade do tempo de serviço. Aliás, tornou-se agora mais evidente como eram parciais as contas das finanças.
"Uma mudança de políticas" permitiria, no mínimo, sonhar. Desde logo, tentar que o problema não se agrave e eternize. Recuperaria professores profissionalizados desistentes, revigoraria os que existem e oxigenaria a atractividade do exercício. Mas não há sinais nesse sentido; pelo contrário.
Nesta fase, a acção do Governo centra-se num recuo da lei das habilitações para algo semelhante ao que acontecia no início do milénio. Essa decisão provocou o tradicional debate sobre a melhor formação. Concorda-se com quem defende que a habilitação própria seja equivalente à que permite aceder ao mestrado profissionalizante essencial para a entrada nos quadros das escolas.
Resumidamente, não se ensina violino, basquetebol, gramática ou álgebra, sem se saber violino, basquetebol, gramática ou álgebra. Ajuda muito se se estudar Piaget, Freud, Hannoun, Erikson, Bruner, Ausubel, Sandel, Markovits e por aí fora. É também fundamental que a profissionalização seja em exercício nas escolas (plurianual de preferência) e não num apressado ensino à distância. Estes domínios são mais determinantes do que os debates que diminuem as pessoas porque se formaram depois de Bolonha, ao mesmo tempo que se omite a descida ocorrida com o absolutismo das Ciências da Educação.
E nunca é excessivo repetir que ensinar é difícil. Necessita de um clima de confiança e de boas condições de leccionação. Requer preparação e energia, e exige a desafiante adaptação da personalidade aos estilos de ensino. Inscreve estudo para a vida e convoca a esperança e o optimismo.
Acima de tudo, urge o regresso de aquilo que as políticas vigentes anularam: professores satisfeitos com uma escolha profissional digna que não os esgota em burocracia e em procedimentos digitais repetidos e inúteis, livres para ensinar e aprender e com tempo para a cidadania.
Paulo Prudêncio
Fonte: Blog Correntes por indicação de Livresco
Sem comentários:
Enviar um comentário