A canadiana, perita em educação, Catherine L'Ecuye esteve em Portugal, no início do mês, para promover os seus livros onde desmistifica algumas teorias da pedagogia que se foram cimentando nos últimos anos. Acredita, acima de tudo, que as crianças precisam de tempo para brincar sem ecrãs e que "perdemos muito tempo e recursos em métodos que não estão respaldados pela ciência e há muitos gurus que se aproveitam da ignorância dos pais".
Editora planeta
A conversa com a psicóloga especialista em educação, Catherine L'Ecuye, com o SAPO24 acabou por acontecer por email uma vez que a agenda da autora internacional não permitiu que o encontro fosse presencial. Canadiana, a viver em Barcelona, tem feito da educação o seu dia-a-dia, lançando livros e conferências por todo o mundo, sendo consultora de educação em vários países, como o México.
Em Portugal é editada pela Planeta e a conversa com o SAPO24 girou muito em torno dos seus livros Educar na Realidade, e Educar na Curiosidade, onde, com base em conhecimento científico validado, partilha com os encarregados de educação estratégias para criar crianças mais saudáveis e melhores adultos. Ficou por responder se tornar as crianças a parte central de uma família, permitindo-lhes tudo o que pedem, é impedi-las de crescer na realidade. E também como fazer que uma criança atinja aquilo a que a escritora chama de motivação transcendente, uma vez que acredita que a motivação externa, tão comum na educação, criou jovens apenas preocupados consigo mesmos.
Com um doutoramento em educação e psicologia, mãe de quatro filhos, diz ser essencial que as crianças tenham contexto e um sentido para as ordens e regras que lhes são dadas. Os diálogos com as crianças são várias vezes referidos ao longo dos livros, tantas quantas as vezes em que acredita ser um exagero a exposição que hoje as crianças têm à tecnologia.
As crianças têm hoje falta de tempo e espaço para se aborrecerem e se tornarem criativas?
Tolstoi dizia que o aborrecimento é "desejar desejar". É importante que os nossos pequenos tenham tempo livre para brincar. Hoje enchemos as suas agendas até ao ponto de parecerem pequenos executivos stressados. A educação infantil converteu-se numa carreira. As aulas estão estão cheias de métodos, mas esquecemo-nos do que precisa uma criança com menos de seis anos, e de como aprende: através das relações interpessoais e das experiências sensoriais. É a partir dos seis anos que a criança começa a desenvolver o pensamento abstrato e tem um sentido de aprendizagem mais formal.
Diz que devemos educar as crianças com realismo. Acha que sobreprotegemos as crianças? Quanto do mundo real lhes devemos mostrar sem os prejudicar? Como, por exemplo, falar-lhes de guerra, doença e morte?
"Educar na realidade" não quer dizer ensinar tudo às crianças e converter a aula numa amostra do que há no mundo. O mundo está louco, tanto que basta vermos os telejornais para comprová-lo. Eu quero que a aula seja um lugar sagrado, como um claustro, um lugar resguardado, e onde protegemos a criança do mal que se passa no mundo. Tem que ser um ambiente preparado adaptado às etapas da infância, dos seus ritmos, da sua inocência, da sua sede de beleza, de natureza, de silêncio, de mistério. Quando falo de "educar na realidade", refiro-me, entre outras coisas, à importância da educação offline.
Em Portugal, houve no ano passado pais que fizeram greve às provas de aferição do 2º e 4º ano por serem em computadores. E, este ano, há já algumas petições para que sejam proibidos os telemóveis nos recreios. Isto é benéfico para as crianças ou impede-as de crescer "no seu tempo"?
Não há nenhum conjunto de evidências que prove os benefícios do uso de tecnologia nas aulas. O conceito da inovação responde a uma lógica comercial, não educativa. No relatório Students, Computers & Learning (2015), fica claro que o uso de computadores acima da média da OCDE leva a piores resultados educativos. O próprio Steve Jobs admitiu que a tecnologia não ia solucionar os problemas educativos. Na minha opinião piora esses problemas porque dissipa a atenção.
Num mundo em que as crianças são constantemente estimuladas, como as proteger dos estímulos típicos do mundo moderno que, segundo diz, as fazem ficar "apáticas"?
Quando sobre estimulamos uma criança, a sua tenção arterial sobe. Torna-se apático e deixa de perceber estímulos mais discretos, mas não menos importantes, como o som de um pássaro, um pôr de sol, a reclamação de um ente querido, etc. É importante que os sons e as imagens se harmonizem com a ordem interior da criança. Temos de readaptar os nossos filhos ao mundo real, quotidiano. Caso contrário, aborrecem-se com as imagens nas aulas e em casa, serão incapazes de se concentrar e de manter uma conversa tranquila.
Diz que os pais impediram as crianças de ter desejos por lhes darem tudo o que pedem. Como pode um pai dizer não ao pedido de uma criança que usa como chantagem ser a única da turma que ainda não tem determinada coisa?
Temos de ajudar os nossos filhos a fazer estatísticas. Dizem que "toda a gente tem", mas não é assim. Na maioria das vezes são dois ou três. Temos de falar com os restantes pais e mães para criar um ambiente diferente e mais próximo do nosso estilo educativo. Por exemplo, não faz falta dar 20 presentes a uma criança no dia de anos, tão pouco faz falta comprar um smartphone a uma criança de 12 anos ou passar os fins-de-semana num parque de diversões. Nós passamos o dia a trabalhar para comprar. Temos de voltar a um consumo mais responsável e dedicar mais tempo a planos familiares simples, tranquilos. A única coisa que as crianças precisam é de passar tempo com os seus pais.
Refere que as crianças crescem cada vez mais rapidamente e perdem partes importantes de ser crianças. Mas se os pais as puserem em contacto mais tarde com algumas tecnologias, ou realidades, não fazem delas menos evoluídas em relação a crianças da mesma idade? Como atingir este equilíbrio?
Não é assim. Os futuros empreendedores não precisam de ser adultos viciados no telemóvel. Precisam de ser pessoas capazes de escutar, e de ter a atenção focada durante muito tempo. Não querem ser pessoas incapazes de inibir os estímulos externos ou encantados pela irrelevância. Precisam de ter autocontrolo, temperança, força interior e critério. Não é preciso ter um smartphone aos 12 anos para saber usar o Word e o Excel com 22 anos. Temos de formar os nossos jovens tendo em atenção o Office, claro, mas não é necessário converter o tablet num método educativo para o atingir. Se o seu filho sabe como usar um smartphone aos 2 ou 3 anos, não é porque seja inteligente, é porque o engenheiro que desenhou o smartphone é inteligente. A tecnologia está desenhada para ser 'plug&play'.
É costume vermos crianças a fazer refeições enquanto vêem desenhos animados ou brincam nos tablets. Isto entra na categoria de "multitarefa" que diz ser prejudicial à criança?
Nunca deveríamos relacionar o uso e abuso de tecnologia com a refeição. Quando uma criança come, come. Recompensar a criança que come com mais ou menos tecnologia pode contribuir para o desenvolvimento de distúrbios alimentares.
Diz que a escola mais tecnológica pode não ser a mais benéfica para uma criança. Quais, então, os critérios que os pais devem ter em conta na hora de escolher uma escola para os filhos?
Não há evidência que relacione a qualidade educativa com o uso de tecnologia. Escolher um colégio é uma tarefa complicada e muito pessoal. Depende do projeto familiar de cada lugar. Em 2024, vou lançar o ensaio novelado "Conversas com a minha professora", que está pensado para ajudar os pais a definir o seu projeto educativo para melhor escolherem a escola dos filhos.
Como se pode aumentar o tempo de concentração de uma criança respeitando os seus limites?
As crianças concentram-se quando encontram atividades ou desafios que se ajustam às suas capacidades. Quando o desafio é demasiado fácil, aborrecem-se. Isso acontece com ecrãs. Quando o desafio é demasiado difícil, sentem ansiedade. Quando há um equilíbrio entre as capacidades e as dificuldades da criança, então a criança entra num ritmo (flow) em que pode estar atento até três horas (o Montessori diz isso, e podemos comprová-lo nas suas aulas) sem se modificar.
Refere a importância da cultura e da beleza na primeira infância, esta é uma realidade apenas atingível para pais com dinheiro, ou que já eles próprios tenham noção da importância da cultura?
A beleza é gratuita. Um pôr do sol, a natureza, um sorriso amável. A beleza encontra-se em museus e catedrais, mas também se encontra na rua. Não creio que tudo o que seja belo sempre se compre com dinheiro. Temos de saber distinguir entre elitismo intelectual e elitismo económico. Temos de aspirar a que a cultura seja para todos, independentemente do nível económico.
Como é que um pai se pode proteger dos "neuromitos da educação" que lhes são mostrados todos os dias, muitas vezes mascarados de ciência? Como distinguir ciência de pseudo-ciência?
Não é verdade que "tudo se molde entre os zero e os três anos" (este é o mito dos primeiros três anos), não é verdade que se tenha que "sobre estimular os miúdos ao máximo" (o mito do enriquecimento), não é verdade que existam períodos críticos para a aprendizagem (o mito dos períodos críticos). Há 15 anos que me dedico a defender a educação baseada em evidências. É uma pena que tenhamos tanto interesse pela homeopatia educativa. Perdemos muito tempo e recursos em métodos que não estão respaldados pela ciência e há muitos gurus que se aproveitam da ignorância dos pais. Por isso escrevi o "Conversas com a minha professora", nesse livro explico de onde vêem os métodos que se usam hoje nas nossas aulas. O prólogo será de Nuno Crato, que tem feito um longo trabalho, em Portugal, a defender a educação baseada em evidência.
Para terminar, tem quatro filhos, as estratégias que usou com os quatro foram as mesmas? Onde entra o feitio de cada criança na educação? Como pode um pai adaptar-se?
Claro que cada criança é um mundo. Para saber o que resulta melhor com cada filho tem que se passar tempo com ele. A educação requere tempo. Por isso é que se têm multiplicado os livros de "receitas" de como educar. Parece-me terrível que exista a "indústria do conselho encaixotado" (como chamamos a esse tipo de livros). Isso acontece porque os pais têm pouco tempo, uma pena. Temos de voltar a conectarmos com as necessidades de cada um dos nossos filhos. A sensibilidade parental vale mais que qualquer livro de crianças.
Fonte: Sapo24
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